22 jun

Disforia :: “A regra é que se vê pouco cinema brasileiro”, diz Lucas Cassales

Disforia (2019) é um suspense psicológico no qual caminhamos num terreno pantanoso e não determinado categoricamente pela realidade. É um filme que convida o espectador a refletir, a encaixar certas peças essenciais. O longa-metragem dirigido por Lucas Cassales teve sua première mundial no Festival de Gramado de 2019, numa mostra paralela carinhosamente denominada “Gaúchão”, pois destinada a filmes realizados no Rio Grande do Sul. No dia 12 de março de 2020, foi finalmente lançado nos cinemas. Mas, por conta dos protocolos de distanciamento social necessários diante da pandemia do COVID-19 as salas tiveram de ser fechadas e a carreira comercial da produção distribuída pela Lança Filmes teve de encontrar os caminhos alternativos do streaming e do VoD, aos quais chega nesta sexta-feira, 26. Conversamos com Lucas para saber um pouco mais sobre a produção, para entender o cinema gaúcho da atualidade e falar da contemporaneidade atravessada por uma crise global. Confira.

 

Como surgiu a ideia do Disforia? Quanto tempo se passou do começo dos trabalhos até a première em Gramado?
A ideia surgiu no ano de 2013, em conversas com o Thiago Wodarski, um dos roteiristas do filme. Tudo começou com a vontade que tínhamos de escrever algo juntos. Ganhamos um edital em 2014. Nele foi inscrita a terceira versão do roteiro. Nela, o filme era mais um thriller investigativo, com pistas melhor e mais claramente definidas. Ou seja, aproximadamente seis anos demorou até o resultado chegar às telonas.

Era necessário alguém com estofo para viver o Dario, pois esse personagem precisa lidar com uma miríade de sensações e atravessamentos. O Rafael Sieg sempre foi a tua primeira opção?
O Rafa foi o único elemento presente desde o início, lá desde o primeiro edital. Admiro seu trabalho em alguns filmes gaúchos de curta e longa-metragem. Na época, ele já estava se mudando para o Rio de Janeiro. Mas, conversei a fundo com o Rafa apenas após sermos contemplados no edital. Tivemos algumas perdas mais ou menos no mesmo período, então isso tratou de nos unir ainda mais, principalmente levando em consideração que um dos temas do filme é justamente a perda. Foi incrível trabalhar com o Rafa, aprendi muito sobre direção de atores com ele. Sua contribuição foi essencial tanto nos ensaios quanto nas filmagens.

 

A pequena Isabella Lima é uma peça fundamental dessa equação. Quais os desafios particulares de lidar com uma intérprete criança dentro desse universo complexo?
Com certeza há um desafio a mais. Às vezes é complicado lidar com crianças no set, um ambiente que exige um foco com o qual elas nem sempre estão acostumadas. Fizemos uma bateria de teste e a Belinha surgiu no meio dela. Para mim era impressionante o olhar que ela emprestava às cenas. E também foi muito importante o contato com a família dela. A Belinha é agitada, como qualquer criança, mas quando ouvia o “ação” entrava na personagem.

Isabella Lima, durante as filmagens de Disforia / Foto Tuane Eggers

Na contramão de um cinema mais didático, você instiga o espectador a entrar sem tantas certezas nesse universo. Sempre te pareceu essencial não dar respostas de mão beijada?
Isso foi se desenhando melhor no processo. Nas primeiras versões do roteiro havia bem mais pistas, era mais didático. Mas fui compreendendo a importância da sensorialidade, da atmosfera. A partir disso, achei melhor levar o filme como uma trajetória onírica. É como dizem, a jornada é mais importante do que o destino. Muitos diálogos foram cortados. Cada vez mais sentia que as falas eram às vezes desnecessárias, entravam como distrações.

 

Há muito se criou uma ideia de cinema gaúcho quase que apartado do cinema brasileiro. Você acha que essa lógica separatista ainda cabe nos dias atuais?
Tem muitas questões aí. O Brasil é um país absurdamente grande. Aqui no Rio Grande do Sul temos uma ligação cultural maior com Uruguai e Argentina, em virtude da geografia, então talvez isso tenha ajudado a construir realmente essa pecha de cinema gaúcho. Atualmente falamos muito de cinema mineiro, também de cinema pernambucano. Acho que isso vem dessa lógica continental, até para facilitar o encaixe em caixinhas e vertentes. Tem a ver um pouco como é observado esse cinema fora do eixo considerado mais central, formado por Rio e São Paulo. E, no fim das contas, difícil nesse sentido de falar de cinema brasileiro, pois há muitas diferenças culturais.

 

O Disforia foi lançado nos cinemas, mas logo os mesmos tiveram de fechar por conta da pandemia, então a carreira do filme terá de seguir em streaming e VoD. Você acha inevitável que o cinema brasileiro se aproprie mais dessas janelas para atingir o público?
Tivemos esse revés bem frustrante. Mas, obviamente, fechar os cinemas era o certo a se fazer. Ficamos com uma grande questão de como seguir. Quando a quarentena acabar, sem vacina ou algo assim, demorará para o público voltar ao cinema com o mesmo vigor. Há muitas plataformas digitais relativamente novas, mas também entra muito nisso uma questão de comparação, pensando em distribuição. Às vezes mesmo um filme mediano de Hollywood chega aqui com uma verba de distribuição considerável. Deveria haver reguladores estatais para realmente o cinema brasileiro não ser tão menosprezado pelo público. Por mais que tenhamos casos excepcionais como Bacurau, a regra é que se vê pouco cinema brasileiro. Também cada vez menos se vê cinema. A Netflix é o nosso novo zapear. Claro, temos de estar atentos a isso, mas ainda há uma enorme discrepância de valores para os lançamentos.

Em tempos de isolamento social por conta do COVID-19, como anda a sua rotina? Tá dando tempo de pensar em filmes novos, por exemplo?
Tenho bronquite. Só vou sair de casa para tomar a vacina (risos). Não quero correr o risco de pegar e nem de passar para alguém. Para mim está bem instável esse processo de quarentena. Estou com muitos projetos para inscrever em editais, tenho alguns adiantados que ocupam mais tempo. Há outros, no entanto, que tenho de mexer criativamente e fazer isso está bem complicado. Nas duas últimas semanas não estou conseguindo produzir criativamente. Por mais que já trabalhasse antes bastante em home office, a gente estabelece outro tipo de relação com os espaços.

Marcelo Müller

Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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