Ela havia recém completado 15 anos quando um pessoal que não conhecia surgiu no colégio onde estudava, no Rio de Janeiro, avisando que estavam procurando por uma garota para estrelar um filme. Parecia bom demais para ser verdade, mas, mesmo assim, Jeanne Boudier resolveu tentar para ver o que acontecia. E o resultado é sua estreia no cinema, já como protagonista, em Deslembro, longa que teve sua première mundial no Festival de Veneza, em 2018, e após ser premiado no Brasil e no exterior, entra finalmente em cartaz no país. Aproveitando a oportunidade, o Papo de Cinema conversou com exclusividade com a atriz, que falou um pouco mais sobre como a sua vida mudou nos últimos meses, como foi lidar com uma questão que suscita tantas polêmicas, como as memórias da Ditadura Militar, e quais são os seus planos para daqui em diante. Confira!
Olá, Jeanne. Como surgiu o convite para participar de Deslembro?
Tudo começou com a Flavia Castro, nossa diretora. Acontece que ela estava procurando por atores bilíngues, que falassem tanto português quanto francês. E essa busca estava acontecendo aqui, no Rio de Janeiro. Dá pra imaginar que não era das coisas mais fáceis de se encontrar, pois tinha que ser uma garota, adolescente, e ter fluência nas duas línguas, não apenas dominar algumas palavras. Por isso ela foi procurar na Escola Dirceu Molière, no Rio de Janeiro, onde muitos alunos agrupam essas características. Eu estudava lá, e também fazia aula de teatro. Calhou as duas coisas, entende? Ela falou com a turma toda, pediu para que quem estivesse interessado enviasse um vídeo, e foi o que fiz. Meses depois, recebi um chamado dela para uma segunda conversa, e foi quando nos encontramos. Não foi assim, de uma hora para outra. Semanas se passavam entre cada um desses encontros. O bom, no entanto, é que cada vez era mais detalhado, me passavam mais coisas sobre o filme e a personagem. Isso foi aumentando o meu interesse, e também a expectativa. Cinco meses depois, acabei escolhida. No início, nunca pensei que conseguiria esse papel. Decidi tentar só para não me arrepender depois, sabe? Mais tarde é que criei essa conexão com a Flávia. Afinal, poxa, se eu tava sentindo toda aquela sinergia entre nós, era provável que ela também estivesse assim. E foi exatamente o que aconteceu.
Fale um pouco sobre a sua personagem. Quem é a Joana?
A Joana é muito parecida comigo, mas também bastante diferente em vários aspectos. Sempre foi muito importante para mim compreendê-la, pois assim como ela, também vivo entre duas culturas, entre a França e o Brasil, com esse aprendizado de dois idiomas. Isso sempre foi uma grande coisa na minha vida. Além disso, temos a mesma idade, gosto do jeito rebelde dela, de estar sempre querendo descobrir as coisas. Tinha muito a ver comigo. Então, foi natural, pois me identifiquei com ela. A Flavia me deu liberdade, me deixou modular a personagem, e assim fui fazendo algumas mudanças. Fomos montando essa menina juntas. Tinha a base, que vinha do roteiro, mas pude também torná-la mais pessoal. Descobrir quem ela era de verdade. Agora, por outro lado, tinha a questão da época. Quando começaram as filmagens, fui conversar com meus pais, e como eles são franceses, não conheciam muito bem esse período histórico brasileiro. Sem falar de outras experiências dela, como, por exemplo, perder o pai. Essa é uma dor que não conheço. Tive que imaginar, trabalhar muito. Foi o meu grande desafio. Era algo muito importante para a Joana, e por isso queria entender esse trauma.
Seus pais são franceses, como você disse. Mas e você? Francesa ou brasileira?
Acho que as duas coisas (risos). Nasci na França, mas vim para o Brasil com dois anos de idade. Meu pai veio trabalhar aqui. Era pra a gente ficar por quatro anos, mas aconteceu que ele gostou tanto que decidiu ficar. Montou uma empresa, mudou a vida de toda a família. Essa pergunta é sempre muito complicada, pois me sinto meio brasileira, meio francesa. O meu espírito, a maneira de pensar, é mais francesa, acredito. Mas cresci aqui, então também tenho um lado brasileiro muito forte. Fico feliz pela decisão dele.
Este é o seu primeiro trabalho no cinema, e já como protagonista. Como foi lidar com essa responsabilidade?
Foi uma experiência incrível, que até agora sigo tentando assimilar. Ainda não estou me dando conta de que tudo isso está acontecendo. Só posso agradecer, tanto à Flavia como à equipe toda. Não pensava que algum dia iria merecer tudo isso. Estou muito feliz. Foi um processo coletivo, todo mundo carregou junto, e me dediquei ao projeto tanto quanto pude. Se tivesse que ter passado por tudo isso sozinha, não sei se teria conseguido. No entanto, como pude me apoiar nos outros, só me restam boas lembranças.
Você já conhecida o trabalho da diretora Flavia Castro? Como foi ser dirigida por ela?
Não conhecia ela. Meus pais, sim – principalmente meu pai, que é bem cinéfilo mesmo. Ele já tinha assistido ao filme anterior dela, o Diário de uma Busca (2010), e havia falado a respeito com muito entusiasmo. Foi incrível trabalhar com ela, é alguém que vê beleza em tudo. Estava sempre disposta a escutar os outros, fazia questão de ouvir cada ideia, cada sugestão. Todo mundo a inspirou de alguma forma nesse processo. Deu muita liberdade, e isso foi muito importante, especialmente para mim, afinal, foi minha primeira experiência. Os atores todos aproveitaram isso, e assim todo mundo se sentiu um pouco dono também do filme, sabe? As relações que iam surgindo entre nós, tudo foi bastante natural, e meio que sozinhos íamos encontrando nosso caminho. Foi bem natural.
Queria que você falasse um pouco sobre a relação com essas mulheres, a mãe e a avó. O que cada uma delas representa para a Joana?
Acho que são duas figuras muito diferentes, que se encontram no final do filme. A Joana está no meio delas, começa mais do lado da mãe, mas aos poucos vai se aproximando da avó. Ela é uma mistura das duas. A mãe fica com esse silêncio, está envolvida por essa dor. Ela não quer falar. E a avó, por outro lado, e também por causa do comportamento da mãe da Joana, acaba servindo de salvação, de válvula de escape para ela. A Joana naturalmente acaba indo atrás dela. Afinal, é quem lhe dá as respostas. A avó entende melhor a neta, e vai compreender essa vontade que a garota tem de saber mais.
Deslembro estreou no Festival de Veneza, foi premiado em Biarritz e no Rio de Janeiro. Como tem sido acompanhar essa recepção?
Começar melhor não dá, né? Foi tudo muito incrível. E esse filme merece tudo isso e muito mais. Por outro lado, nunca imaginei que algo assim fosse acontecer. A cada sessão que temos, me emociono mais. No Festival do Rio do ano passado ganhamos os prêmios de melhor filme tanto pela Crítica como pelo Público. É uma imagem tão linda, pois concilia os dois mundos, esses dois extremos. É um filme que toca tanta gente diferente. Fala de uma história até mesmo comum nesse país, mas através de sentimentos universais. Acho que é por isso que as pessoas se identificam tanto.
Bom, pelo jeito o bichinho do cinema te mordeu de vez. Pretende seguir atuando?
Nossa, com certeza. Bom, como disse antes, já estudava teatro antes de tudo isso acontecer. Acho que foi um sinal, Deslembro não foi uma surpresa, foi uma confirmação de algo que há muito eu sonhava. Não tenho outros projetos confirmados no momento, mas com certeza quero seguir nessa área. É o meu sonho. Vou fazer tudo o que for preciso. Quero contar mais histórias, mas sou muito jovem, então tenho muito o que experimentar ainda. O certo é que me apaixonei.
(Entrevista feita por telefone na conexão São Paulo / Porto Alegre em junho de 2019)
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