Kleber Mendonça Filho está seguindo os passos de François Truffaut e de Jean-Luc Godard, entre outros. Assim como os veteranos que se lançaram como críticos na icônica revista Cahiers du Cinema e depois se consagraram como alguns dos maiores realizadores da França, o cineasta pernambucano também começou primeiro refletindo, para depois passar para a ação. Tanto que, depois de uma série de curtas premiados no Brasil e no exterior, ele estreou em longa-metragem com o documentário Crítico (2008), que falava justamente sobre o ofício de ver filmes e escrever sobre eles. Depois veio o retumbante O Som ao Redor (2013), premiado no Festival de Gramado e eleito um dos dez melhores filmes do ano em todo o mundo pelo The New York Times, e agora ele está de volta com Aquarius (2016), selecionado para a mostra competitiva do Festival de Cannes e premiado nos festivais de Sydney (Austrália) e Lima (Peru), entre outros. Aquarius foi exibido na sessão de abertura do 44º Festival de Gramado, e o Papo de Cinema aproveitou essa oportunidade para conversar com o diretor sobre esse novo, e polêmico, projeto. Confira!
Aquarius é muito próximo e, ao mesmo tempo, muito diferente de O Som ao Redor. Queria falar sobre o teu processo criativo. De onde vem a inspiração para o teu cinema?
Acho exatamente isso. Aquarius é muito diferente e também claramente fruto de alguém que fez O Som ao Redor. Mas ele tem um jeito, uma roupa diferente, porque ele não é O Som ao Redor, é outra coisa. Curiosamente, foi filmado há exatos três quilômetros de onde filmei O Som ao Redor. Os dois são, de fato, muito próximos. Um fica na beira da praia, o outro há uns 200 metros pra dentro da cidade. O Aquarius fica na primeira fileira de imóveis de frente para o mar. O Som ao Redor tem uma cena apenas, quando o Francisco vai tomar um banho noturno, e você vê o mar e a avenida Boa Viagem, que está no Aquarius. Mas ele se passa nas ruas detrás.
Cinema, pra ti, é um processo pessoal? Tem que falar de coisas que você conhece? Da tua aldeia para o mundo, digamos?
Sim, e acredito que isso é possível até no cinema industrial, mais comercial, também. É por isso que a gente tem tantos exemplos incríveis de filmes hollywoodianos que são claramente pessoais. Basta pegar os filmes de Billy Wilder para a United Artists, ou os de Howard Hawks, John Ford, John Carpenter… Blake Edwards, absolutamente. São cineastas que trabalharam para estúdios e fizeram filmes que são muito deles. A ideia de que um filme industrial não é necessariamente pessoal é boba para mim. Você pode fazer um filme com R$ 30 mil e não ter nenhuma personalidade, ao mesmo tempo em que pode fazer um de US$ 30 milhões e ser a sua cara. O ponto de vista pessoal é essencial e fico muito grato, realmente aprecio a reação que meus filmes têm provocado, de as pessoas reconhecerem que é algo específico, autoral, no caso. Acho que Aquarius vem de várias preocupações, incômodos e irritações, um pouco como O Som ao Redor também, e da mesma forma como foi com Recife Frio, sobre a vida em sociedade.
Você chegou a comentar que houve momentos, durante a produção de Aquarius, que chegou a pensar que o filme não fosse sair, que estava tudo errado. Isso foi por causa do processo de realização?
Não se trata de ter sido um processo turbulento. Foi incrível, na verdade. Mas, durante a montagem, há bons dias e outros não tão bons. E quando se acumulam doze dias não tão bons, você começa a ficar preocupado. Só que a própria situação de você não estar tão satisfeito faz com que você comece a procurar por saídas, até que as encontra, e tudo dá certo. Aquarius, assim como O Som ao Redor e vários outros projetos meus, teve momentos difíceis, principalmente durante a montagem. Mas faz parte. O que importa é que as soluções são encontradas e você chega ao filme que quer fazer. Acho que Aquarius faz parte dessa séries de inquietações que tenho sobre a vida em sociedade no Brasil, em Pernambuco e em Recife.
E como isso se reflete no roteiro? Porque é ali onde tudo nasce, certo?
Quando você tem uma mulher, em uma sociedade machista, enfrentando homens. Há dois momentos no filme em que você vê a mulher de frente para homens. Primeiro é quando eles vem bater na porta dela para falar sobre a possibilidade de vender o apartamento. Uma senhora, baixinha, com coque preso, abre a porta e tem três homens olhando para ela. Acho isso um conflito rico.
E ela de imediato já impõe sua presença, tanto que nem deixa eles entrarem…
A linha divisória é a porta. No O Som ao Redor já tinha isso. Quando o Irandhir (Santos) chega para propor o serviço de segurança, João e o tio dele ficam do lado de dentro da cerca, e ele do lado de fora, na calçada, e a câmera é colocada exatamente em cima da cerca, dividindo o posicionamento deles. Quando os seguranças chegam para pedir a benção do Francisco, eles são deixados na cozinha, e a empregada avisa que vai falar com ele. E ele vem, lá de dentro do apartamento, pra falar com eles na área de serviço. No final do filme, quando ele tem interesse em ser protegido por eles, os chama e os leva para a sala de estar. São barreiras e linhas divisórias que esses meus filmes tem, de certa forma. Em Aquarius, quando ela recebe a visita dos homens, ela os mantém do lado de fora da porta. É quase como aquela lenda do vampiro, que você não pode convidá-los para entrar em casa. Os meus personagens estão ligados nisso.
Outra figura que você usa nos dois filmes, e a citaste agora, é quando o Francisco vai tomar banho noturno, e a Clara também entra no mar, que é o nadar com tubarões. Isso é uma demonstração de força do personagem. Este foi teu objetivo?
Força e inteligência. Se você pensar em termos estatísticos, você está sendo inteligente. Se você entra no mar em Boa Viagem, a probabilidade é muito pequena de vir um tubarão e lhe morder. Existem vários fatores agravantes. Tipo, final de tarde é um deles. Não trinta metros, mais oitenta metros adentro. O banho dela não é recreacional, para ficar lá aproveitando, como o recifense fazia vinte anos atrás.
É quase como um processo de purificação…
Exatamente isso! Ela entra e sai. A mesma coisa com o Francisco, só que quando ele mergulha, eu corto. Mas ele, realmente, queria só tomar um banho noturno. Ele mergulha, e na mesma hora sai. Ele não vai ficar lá, sozinho, nadando a cinquenta metros, no meio da noite. Isso não existe. Acho que ninguém faria isso. É uma prova de inteligência, porque o mar está lá, sei que é perigoso, mas ela entra e sai. E ainda tem a ajuda do Roberval, de uma equipe de bombeiros e salva-vidas. No roteiro original ela entrava três vezes no mar, mas no filme percebi que acabaria não fazendo sentido. Uma vez que você estabelece ela entrando no mar pela primeira vez, bastava mostrar, no final, ela saindo da praia, da forma como está em cena.
Gostaria de tocar em um assunto delicado, que vem sendo muito debatido nas últimas semanas, que é a comissão que vai escolher o filme brasileiro que irá representar o país no Oscar 2017. Aquarius já está vendido para os Estados Unidos?
Sim.
Então ele poderá concorrer em todas as categorias, não apenas a Filme Estrangeiro.
Exato.
Há uma preocupação neste sentido, de fazer campanha por lá para conseguir outras indicações, como para Sonia Braga como Melhor Atriz?
Com certeza. A distribuidora lá tá querendo muito fazer isso. Mas é claro que a categoria de Filme Estrangeiro é o prêmio é a indicação mais próxima da realidade. Acho que você passando para um outro patamar, como Atriz, é mais difícil.
Pergunto isso porque tivemos um caso bem pontual com o Cidade de Deus (2002), que não foi indicado a Filme Estrangeiro e depois conseguiu indicações bem mais importantes, como a Direção e Roteiro.
O Central do Brasil (1998) também foi além, com a indicação a Melhor Atriz para a Fernando Montenegro. Portanto, é claro que pode acontecer. Porém, nosso grande questionamento não é o Oscar em si, mas, sim, o processo, que precisa ser claro, justo e democrático. O que acho que não está sendo, quando um membro da comissão vem se manifestando de forma contrária. E não é só questão de atacar, pois isso faz parte. Acho que as pessoas têm o direito de serem idiotas em uma democracia. Mas a partir do momento em que ele começa, inclusive, a caluniar a equipe e a mim, dizendo que a gente foi pra Cannes de férias, com verba do governo pra ficar lá, que a gente foi pago pelo governo para fazer o protesto, isso se torna extremamente sério e não ético. Se isso que estamos questionando. Se o (Marcos) Petrucelli estivesse lá no canto dele, com as ideias dele relacionadas à política e estivesse na comissão, não tem problema algum. Nunca questionei os outros membros. Pra mim são pessoas, profissionais do cinema, que estão na comissão. Não tenho problema com isso.
Tem uma crítica em particular, aquela do “quem não tem Cannes, caça com Gramado”…
Isso é estúpido.
Mas gostaria de usar como gancho. Por que não estar concorrendo? Por que vir a Gramado e não entrar na disputa, marcar presença apenas de forma hors concours?
Acho que para a estatura que o filme adquiriu e desenvolveu durante os últimos três meses, eu achava – e acho ainda, pois estou totalmente feliz de termos vindo a Gramado e com o que está acontecendo conosco aqui – que essa devia ser a nossa forma de nos apresentarmos. A organização do festival demonstrou respeito pelo filme, respeito por Sonia e por mim. A entrada no tapete vermelho, antes da exibição, foi algo que não esperava. Eu venho a Gramado há vários anos e nunca havia visto algo nessa proporção. Já estive aqui como crítico e também como cineasta. Achei a homenagem muito sofisticada e elegante. E ainda fomos levados para um momento muito especial, após a projeção, para um jantar de muito bom gosto e que mostrava um respeito muito grande por tudo que havia acontecido naquela noite. Isso preciso confessar que não é muito comum no circuito de festivais brasileiros de cinema, quando as coisas são mais institucionais, digamos assim. Então, acho que trazer o filme para Gramado, exibi-lo na abertura, que é um foco gigantesco, o filme ser bem recebido como foi, sendo ovacionado, com aquela celebração da figura de Sonia e sua importância dentro da história do cinema nacional, e depois ainda termos uma coletiva de imprensa super tranquila, honesta, pra cima, foi a melhor coisa que poderia ter acontecido. Nunca nos pareceu ser interessante competir.
Isso tem a ver também com o ineditismo exigido por Gramado?
Também tem essa questão técnica. Eu queria, e assim nós fizemos, que a primeira exibição pública do filme no Brasil fosse na cidade do Recife, onde foram as filmagens. E não só por isso, mas também. Isso é muito importante, digamos que 50%. Os outros 50% é que Recife e Pernambuco possuem a mais espetacular e bela sala de cinema do Brasil, o São Luiz, equipado com projetor 4K e som incrível. Ou seja, era o lugar perfeito. Até porque se não tivéssemos o São Luiz, só salas alternativas ou multiplexes, não acho que teria sido lá a première nacional. Mas uma vez que o temos, o lotamos com 1.023 pessoas, outras duas mil ficaram querendo ingressos. E exibindo antes em Recife, a gente não poderia estar competindo em Gramado. Então foi tudo isso, junto, que fez nossa participação no Festival de Gramado ter sido uma sessão incrivelmente especial, e estou muito feliz com isso.
Com o ato feito em Cannes, Aquarius acabou sendo símbolo de um país dividido. Você não acha que o filme, por si só, já não provocaria esse debate?
Provocaria, com certeza, pois o filme é muito forte politicamente, mas eu, simplesmente – e não só eu, mas toda a equipe e boa parte de quem faz audiovisual no Brasil que estava em Cannes e não tem relação com o filme – achei que seria uma oportunidade incrível de nos posicionarmos. Quando a gente fez isso, e foi apenas um pequeno gesto, repito. Foi questão de segundos, mas para 200 câmeras com lentes poderosas apontadas para nós. Eu não conseguiria ter me fingido de morto e não ter feito nada. Não só eu, mas toda a equipe. Acho que foi um ato muito importante, que tocou num nervo. A repercussão foi nacional e internacional, saímos na capa do The Guardian do dia seguinte, versão impressa, e é muito importante, em uma sociedade, que a gente não enlouqueça. Acho que, às vezes, no Brasil, a gente fica doido. A história é narrada de uma maneira fictícia. E quando você vê o documento oficial mentindo, começa a pensar que está louco. Mas não sou eu, eles é que estão doidos, pois a verdade é essa aqui. Dilma tava tendo uma presidência difícil e complicada, mas ela foi sabotada criminosamente, pelos seus próprios colegas, e a moral da história é que um grupo que não conseguia ganhar eleições desde 2002 decidiu tomar o poder sem o aval das urnas. Isso, na verdade, é o que está acontecendo. E a história está sendo apresentada de uma outra maneira. Por isso é muito importante que você não enlouqueça. Acho que tenho um dever moral, enquanto cidadão brasileiro, de estabelecer meu ponto de vista.
Eu fui aluno na faculdade do Giba Assis Brasil, e uma frase que lembro dele dizer em aula e que carrego até hoje é: “a vida não precisa ter lógica, mas a ficção, sim”. Você comenta isso, diz que tem certas figuras reais que, se fossem colocar no papel, ninguém acreditaria nelas. Você, que também é roteirista, como é conhecer esse limite, estabelecer até onde pode ir na ficção sem ultrapassar os absurdos da realidade?
Acho que você tem que trabalhar muito com a inteligência emocional, e dar crédito ao leitor, ou espectador, que ele ou ela vai dar crédito que isso é verdade. Não é que decidi, simplesmente é o meu estilo, mas nunca quis mostrar Clara no apartamento dela, tranquila, levando sua vida normal, e cortar para a construtora, onde Diego está em uma reunião, com seus funcionários e o avô dele, dizendo: “o que a gente vai fazer com a Dona Clara?”. Não queria isso no filme sob hipótese alguma. Então, quando você foca nela, você coloca o filme nas costas dela, o que é uma coisa boa. E as vezes que ela encontra com Diego, são todas ocasiões em que ele vem no prédio, ou em uma única exceção, que é quando ela decide ir na construtora.
A construção do personagem do Diego é muito boa, pois o espectador nunca consegue ler no rosto dele o que ele está pensando…
Ele é muito simpático. Quer dizer, não pra mim (risos). Mas ele é simpático dentro de uma ideia de mercado, dentro de uma ideia medíocre de alguém que é simpático. Inclusiva, a Ana Paula, filha da Clara, acha ele simpático. Mas isso porque ela não tem a perspicácia da mãe.
Interessante como todos têm suas justificativas para seus atos. Diego acha que está apenas tocando um negócio, a Ana Paula diz que quer ajudar a mãe, que está preocupada. Ou seja, não há um maniqueísmo explícito no filme.
Isso porque acho que quem tem a decisão final é a Clara. Não importa o que a Ana Paula ou o Diego pensem. Lembro que alguns anos atrás da Apple vendeu 54 milhões de iPhones, e no trimestre seguinte vendeu 53 milhões. E os acionistas ficaram preocupados. Mas por quê? Por que venderam 53 e não 55? Isso é fracasso, portanto? Esse é o problema do capitalismo, sempre quer mais. Se fosse um sistema tranquilo, acho que teria mais chances de ser bem-sucedido. Mas ele tá adernando, é um navio que está afundando, pois é autofágico. Ele come a si mesmo. E isso tudo porque precisa atingir metas, que é o objetivo do Diego. E Clara não tem nada a ver com isso. Não é problema dela.
A Maeve Jinkings me contou que você armou certas peças durante as filmagens com os atores. Você chegou a fazer algo parecido com a Sonia Braga?
É claro que preguei uma peça ótima com a Sonia. Mas eu não vou revelar, porque isso é uma coisa íntima do filme (risos). Preguei peças com todos.
Como vai ser o lançamento de Aquarius nos cinemas?
Estamos entrando em cartaz agora no dia primeiro de setembro no Brasil, com 60 a 80 cópias por todo o país. O Som ao Redor, para termos de comparação, foram 13 cópias. É muito diferente, muito maior.
(Entrevista feita ao vivo em Gramado em 27 de agosto de 2016)
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