Gabriela Amaral Almeida é um dos principais nomes do cinema brasileiro e investir numa corrente não tão comum por aqui: o terror e o suspense. Após uma aclamada carreira de curtas-metragens, que lhe rendeu premiações nos festivais de Paulínia e no Cine PE, entre outros, estreou no ano passado com seu primeiro longa-metragem, o aclamado O Animal Cordial (2017), premiado no Festival do Rio e no Fantaspoa – Festival de Cinema Fantástico de Porto Alegre. Agora, volta às telas com mais um trabalho no formato, o suspense A Sombra do Pai, premiado como Melhor Filme e Direção no Rio Fantastik, o Festival de Cinema Fantástico do Rio de Janeiro, e selecionado para o Festival Internacional de Cinema de Tóquio. A estreia, no entanto, foi na mostra competitiva oficial do mais antigo e tradicional festival de cinema do Brasil, em Brasília. Aproveitando a ocasião, o Papo de Cinema conversou com exclusividade com a realizadora, em um bate-papo inédito que publicamos agora. Confira!
A Sombra do Pai fala do luto familiar. De onde veio a vontade de abordar essa temática?
Não sei. Talvez da sensibilidade do momento que eu estava passando. Acho que quem faz filmes, ou qualquer tipo de arte – música, teatro, pintura – é sempre uma tentativa de apreender um sentimento. A gente precisa disso. E vem de considerações minhas sobre ser filha, de várias reflexões. Temos nossas questões com o paterno, o materno, o masculino, o feminino. Estava numa época de questionar tudo isso, talvez não racionalmente, mas de tentar entender sob uma outra perspectiva, que só o tempo poderia me trazer.
Poderia falar um pouco mais sobre essa afinidade com o cinema de gênero?
Pra mim foi normal. Cresci nos anos 1980 e 1990, e naquela época passava muito filme de gênero na televisão. Ao mesmo tempo, fora as novelas, não existia produção nacional na tevê. Nos anos 1990 veio o VHS, e já tinha consolidado meu gosto desde criança. Desde novinha era fã de cinema de horror por causa desses filmes a que assistia na TV aberta. Outra coisa foi que, desde a alfabetização, sempre me interessei por histórias fantásticas. Li muito Stephen King, por exemplo. Engraçado é que a criação dos filmes, ou até mesmo o meu objeto de mestrado, nunca passou por um questionamento ou uma consciência de estar fazendo algo que ninguém mais fazia. Era, simplesmente, algo natural.
Como inserir os elementos fantásticos durante a construção de um roteiro?
Olha, sou baiana. Tive um namorado que contava de uma babá que recebia santo, para ter uma ideia. E isso é natural por lá. Costumo dizer que a Bahia é um outro planeta, porque o sincretismo é praticado, mesmo. Nasci em setembro, e minha mãe dava caruru pra santo, que é um costume de orixás. Por lá, benzedeiras convivem com padres católicos. Essa mistura está no cotidiano do baiano. Não é uma coisa espetaculosa, faz parte do dia a dia. Via minhas tias fazendo mandinga. Minha avó tinha um altar para Iansã, Cosme e Damião, Jesus Cristo, uma coisa bem almodovariana. Eu já vivia o sincretismo antes de saber o que isso significava.
Um elemento recorrente nos filmes de terror é a trilha sonora, sempre muito carregada. Em A Sombra do Pai, ela é percebida de modo discreto. Qual a função da música nos teus filmes?
É muito importante. A gente vem de uma tradição de cinema direto que exclui esse elemento da feitura dos filmes. Por isso que a trilha sonora é pouco estudada e pouco aplicada por aqui. Sou casada com um compositor – que, inclusive, trabalhou no filme – e estamos juntos há 15 anos. Temos uma relação de olhar o mundo e processá-lo criativamente em conjunto muito potente. Pra mim, a trilha sonora é mais um artifício do cinema, tanto quanto a câmera, ou a lente. No entanto, por não ser usual, ela pode ser até questionada. “Mas precisava da trilha?” Precisava, sim. O horror, ao menos, precisa de uma condução emocional mais clara.
No entanto, geralmente ela é tão mal empregada, ainda mais no cinema de gênero…
Mas, ao mesmo tempo, temos alguns mestres, como Hitchcock, que fizeram maravilhas com a música em seus filmes. Agora, se formos falar desses genéricos que chegam todas as semanas aos cinemas, não dá mesmo pra comparar. Esses são feitos a toque de caixa, não há cuidado. O terror dá muito dinheiro, pois é barato, e dá público. Também pelo mesmo motivo, o gênero entrega muita coisa ruim. Não tem jeito. Assim, vira quase uma publicidade, as referências são literalmente jogadas, e música serve apenas para garantir um ou outro susto na plateia, e acabou.
É um tipo de filme, também, que muitas vezes não exige uma reflexão mais aprofundada por parte da audiência…
Ah, com certeza. Mas isso é uma questão de contexto. E não do gênero, pois ele também gerou obras absolutamente brilhantes. O compositor trabalha, ao menos é o diálogo que estabelecemos entre nós, a partir do que o personagem está tentando esconder, e iremos revelar esse segredo através da música. Então, não é uma trilha para efeito de cena, é para compor o personagem. Tem essa diferença, o que pra nós é muito importante.
Como foi a escolha do elenco? Você já pensava nesses nomes ao escrever o roteiro?
Olha que coisa louca! A primeira coisa que precisava definir era quem seria o Jorge, o protagonista. Afinal, era um personagem cuja masculinidade precisava ficar impressa já na imagem. Era isso que iríamos desconstruir durante o filme. Precisava, portanto, ser um homem forte, alto, que causasse um contraste ao ser colocado ao lado da menina. Ao mesmo tempo, tinha quer ser um cara sensível, além de bom ator. Foi a produtora de elenco que me apresentou ao Julio Machado. Durante um café, que durou umas três horas (risos), deu o clique e vi que teria que ser ele. Eu nem sabia quem era o Julio, o Joaquim (2017) não havia estreado ainda. Agora, a coincidência mais linda é que ele e a Luciana Paes fizeram escola de teatro juntos. Eles já se conheciam, e fui conhecê-lo por outra pessoa, não foi ela que me apresentou a ele. Os dois são amigos.
A Luciana é uma parceira tua de outros trabalhos…
Com a Lu tenho um diálogo que não uso muito o racional. É tudo na base da brincadeira, e assim conseguimos chegar aos lugares de uma forma mais fácil. Costumo chamá-la de ‘duplo’, porque tem uma visão de mundo muito parecida com a minha. Um humor meio estabanado, de gente que cresce demais, que fica meio corcunda. A gente tem alguns pontos em comum. Isso faz com que a troca com ela seja muito prazerosa. Confio 100% nela, e tenho certeza que confia 100% em mim. A confiança é um esteio muito importante para chegarmos a lugares mais escuros. Ela estava em O Animal Cordial (2017). Pra chegar naquele lugar, se você não tem confiança total, não há entrega. Fica só a encenação. No mal sentido. Fica falso.
E como foi com a menina? Quantas crianças vocês testaram?
Entrevistamos mais de 300 garotas. A partir daí, fui reduzindo. A Alice Wolfenson, nossa produtora de elenco, também entende muito do meu universo. Ela havia produzido o elenco do curta Estátua (2014) – e lá também trabalhamos com uma menina, que foi brilhante. Tinha que ser com ela, que me ajudou a reduzir de 300 para 100 nomes, depois para 50. E, nesse processo, fui vendo quem resistia mais. Qual era a menina que não deixava de brincar. Só depois que selecionei a Nina Medeiros, é que descobri que ela havia feito uma participação no As Boas Maneiras (2017). Liguei na hora para a Juliana Rojas e contei dessa bonita coincidência. Mais uma prova de que nossos universos se tocam.
A Nina Medeiros embarcou de imediato na proposta do roteiro?
A Nina tem uma predisposição para o jogo que é essencial para o ator de cinema. Porque, se não quiser brincar, se ficar de birra, não vai dar. Minha maior preocupação com ela era mantê-la integrada à noção de jogo. Ela sempre soube que aquilo era um filme e o que estávamos fazendo. Quando tenho uma criança no projeto, tenho o cuidado de reescrever o roteiro só com as cenas dela, usando uma linguagem mais acessível, para que possa lê-lo. Como se fosse uma historinha. Faço trabalho de mesa com os atores, e também com a criança. Afinal, ela tem o que dizer. Dar esse lugar é importante, pois é uma atriz que pede por isso. É uma menina muito sedenta de vida. É comovente. No plano em que chora no armário, estávamos tão fascinados por ela – e aquele era o último dia da Lu no set – que usei essa partida como subtexto para chegar naquela reação. Foi um plano de cinco minutos, com a Lu falando como havia sido a convivência entre elas, quanta vida ela ainda tem pela frente, e se despedindo. A Nina tava completamente emocionada. Ela é um fenômeno.
Você passa a ideia de ser muito segura do que quer e como atingir o melhor resultado com o teu trabalho.
É tudo impressão (risos). Tenho muita segurança no que sinto, mas não no que tenho que fazer. Por isso é importante saber lidar com o improviso. No jazz, só improvisa quem conhece bem a estrutura principal. Senão vira ruído. Improviso não é bagunça. Eu vou decupando na hora que estamos filmando, não faço nada antes. Mas chego no set sabendo quais serão as partes importantes de cada cena. Sei quais são os gatilhos. Se não soubesse, seria só desgaste da equipe, dos atores. Então, faço de tudo para preservar esse momento tão especial, que é o ligar da câmera. Tem-se banalizado muito esse instante. Assim, se perde a adrenalina. É desperdiçar a segurança de contar um conto com algo que não é cinema.
Como você imagina que o público irá receber A Sombra do Pai?
Esse tipo de filme não enche mais as salas. Nós estivemos no Festival de Brasília, e foi emocionante, pois é o festival com o público mais cinéfilo do país. Ver a sala do Cine Brasília completamente lotada, foi incrível. No entanto, foi um fenômeno isolado, algo que só acontece em festivais como aquele. O Janela de Recife, ou a Mostra de Tiradentes, também conseguem esse tipo de reação. Mas são poucos. Nós passamos por festivais internacionais, também. Esse é o percurso do cinema de arte. Vai buscando mercados, no Brasil e no exterior. Não dá pra ficar num só lugar. O cinema não é só mais a única janela de exibição. Às vezes, tenho a sensação de estar presenciando o cinema virar um museu, uma coisa segmentada. Os museus são importantes para a preservação da memória, mas, por outro lado, são também lugares mortos. Hoje em dia há muitas telas. Jovens e adolescentes não possuem mais interesse em ir ao cinema, querem só o streaming. É um negócio chocante. Então, não dá pra saber o que esperar. Temos é que torcer pelo melhor, e estar pronto para o pior. O cinema não vai morrer, mas estamos no meio de um turbilhão.
(Entrevista feita ao vivo em Brasília em setembro de 2018)
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