O diretor e roteirista Pierre Schoeller é um dos nomes mais em alta no atual cinema francês. Responsável por títulos como Versailles (2008), premiado com o Étoiles d’Or de Melhor Filme de Estreia e selecionado para os festivais de Cannes e de Hamburgo, e O Exercício do Poder (2011), que lhe rendeu o César – o Oscar francês – de melhor roteiro original, Schoeller foi um dos convidados deste ano da comitiva de artistas que vieram ao Brasil apresentar seus trabalhos no Festival Varilux de Cinema Francês, ainda no primeiro semestre. Dos diversos longas exibidos, um dos que mais despertava curiosidade era A Revolução em Paris, não apenas por abordar um episódio histórico amplamente conhecido – a Revolução Francesa – mas também por incluir um elenco repleto de nomes estrelados, como Gaspard Ulliel, Adèle Haenel e Louis Garrel, entre outros. Aproveitando sua passagem pelo Rio de Janeiro, o Papo de Cinema conversou com exclusividade com o cineasta, que falou mais sobre o projeto e as motivações por trás dessa história, que entrou finalmente em cartaz nos cinemas de todo o país. Confira!
A Revolução em Paris foi um filme muito aguardado, seja pelo grande orçamento ou pelo elenco repleto de nomes conhecidos. Como se deu essa produção?
Foi formidável. A recepção, principalmente na França, foi muito especial. Em parte, esse sentimento se deve pelo fato do meu filme anterior, O Exercício do Poder, ter tido um desempenho excelente, e havia muita expectativa a respeito do meu próximo trabalho. Além do elenco e do orçamento, como você bem apontou, havia também a questão do assunto que seria abordado nesse projeto, que despertou curiosidade. Chegou ao ponto da imprensa, sem muito embasamento, divulgar valores investidos que não tinham nada a ver com a realidade, era pura especulação.
Apesar de serem ambientações e tempos diferentes, A Revolução em Paris e O Exercício do Poder são dois filmes que se comunicam, não concorda?
Com certeza. Apesar de considerar importante ressaltar que não se trata de uma continuidade. Isso foi particularmente sentido entre os críticos franceses, que deixaram claro terem se surpreendido com essa nova abordagem. O que notei, posso dizer, é que havia uma vontade muito grande em assistir a esse filme, porém, ao mesmo tempo, uma notável resistência, uma dificuldade mesmo, para aceitá-lo tal qual se apresenta. Haviam se preparado para uma história que não é, em absoluto, a que resgato em cena.
Imagino que fazer um filme como esse não tenha sido um processo fácil…
Absolutamente não. Entre O Exercício do Poder e A Revolução em Paris se passou quase uma década. Levei muitos anos até conseguir aprontá-lo. Foi muito difícil. Demorei porque tinha que escrever, me envolver com a parte criativa, mas também ir atrás do financiamento, ou seja, tinha esse lado empresarial para torná-lo possível. Mais de seis anos envolvido. É uma obra que existe, e está pronta, com vida própria, mas acredito ser de mais fácil acesso ao público exterior do que o francês. Afinal, lá, cada um tem a sua própria opinião sobre a Revolução Francesa.
Esse é um evento, no entanto, que ocorreu há mais de dois séculos. Todo esse distanciamento ajudou ou complicou a abordagem que você escolheu?
Há uma questão prática envolvida, que foi a necessidade de recriar tudo: os figurinos, os cenários. Haviam arquivos, que foram uma base de consulta recorrente. Inclusive os discursos, os diálogos, as canções, tudo veio direto daquela época. Porém, filmávamos como se fosse algo presente, mantendo o frescor, a atualidade dos diálogos. Sem voltar ao passado com uma sensação de nostalgia. Essa foi uma grande dificuldade para todo mundo: viver no passado, mas como se fosse o presente.
A Revolução Francesa foi um evento que implicou repercussões em todo o mundo, não apenas na França.
Com certeza. Foi um momento de civilização. Houve o momento de inventar a roda, descobrir o fogo, e depois a liberdade, o debate político. São questões essenciais, ainda que frágeis. Hoje, o espírito democrático republicano tem sido muito atacado. O motivo mais simples, mais humano, é que me interessava. Não fiz o filme somente para falar da revolução. Não fiz para falar de coisas de hoje, também. Queria buscar essa esperança. Queria mostrar esse povo politizado.
Ao mesmo tempo, o filme termina com uma cena muito forte, de barbárie, que se aproxima do discurso de direita extrema que temos visto ganhar espaço hoje em dia. O que você quis dizer ao encerrar com tamanha violência?
Ainda que não seja exatamente a última imagem, era o destino daquele rei. Ao menos, assim como eu via. Era o universo dele, era filho de reis, que também haviam sido filhos de reis. Era tudo o que conheciam. Eram como as estrelas do céu, algo imutável. Só que esse é um momento de transição, um novo mundo que começa, e dessa vez, sem essa figura, sem um rei. Eles, o povo, é que o condenaram. Fiquei obcecado com essa ideia. Nós, os franceses, é que fizemos isso. Não se trata de uma herança de violência. É uma herança da escolha de mudar a sociedade. Não depende apenas de um ser superior. Ele fala: “cortamos o laço”. Aquilo não foi inventado, quando pegam a cabeça do rei e dizem: “isso fomos nós que fizemos”, realmente aconteceu. É muito violento, concordo. Mas, depois, começa o terror, quando a violência irá aumentar ainda mais.
Esse filme teve um dos maiores orçamentos do ano na França, fala-se de mais de 15 milhões de euros. Como se dá a relação com o Estado por lá? No Brasil, tem se questionado muito o envolvimento do governo com a produção cinematográfica.
Não teve dinheiro do Ministério da Cultura, diretamente, por exemplo. Mas há um sistema de subsídio que incentiva o investimento da iniciativa privada. Por exemplo, se você gastar um milhão de euros em um projeto, que irá gerar empregos e movimentar a economia, ganhará também esse reconhecimento e receberá isenções fiscais. Ou seja, pelo que ouvi falar, é muito parecido com o que já acontece no Brasil e tem sido atacado, o que é um absurdo. Afinal, é algo que ajuda bastante. O cinema é único, na França. É um patrimônio nacional, e muito valorizado. Por isso o Estado está envolvido nessa regularização, e na dinâmica do mercado. Todo mundo está sofrendo com a chegada da Netflix, da Amazon, e outras plataformas de streaming. É preciso estar preparado.
Há reserva de cota de tela na França? Como se dá esse equilíbrio com o avanço do cinema de Hollywood, por exemplo?
Não existe um mecanismo de cota na França. Mas é a lógica do mercado. Há muitos cinemas menores, de rua, e a produção nacional é imensa. O público quer ver filmes franceses. Então, há oferta, e também procura. Até poderia ser possível uma ingerência maior do Estado, mas não é necessária, pois já existe essa cultura entre os espectadores. 40% das salas de exibição, em todo o país, são independentes, para se ter uma ideia. Isso permite a exibição de todos os tipos de filmes.
Gostaria de conversar sobre a participação feminina no filme. A história geralmente é contada pelos homens, mas em A Revolução em Paris a presença das mulheres é muito marcante.
Eu queria filmar personagens femininos. Mas, na verdade, o meu interesse maior é o povo. Quando nos voltamos à população, é todo mundo, homens, mulheres, diversas idades. Não exagerei a participação das mulheres, isso corresponde ao que os historiadores nos ensinam sobre a revolução. Há personagens históricos, que realmente existiram, entre elas. A rainha Aidu, interpretada por Céline Sallette, ou Pauline Léon, papel da Julia Artamonov, de fato existiram, por exemplo.
Você já tinha essa ideia de que o envolvimento das mulheres era equilibrado com o envolvimento dos homens, ou esse é um conhecimento comum na França?
Quando comecei a escrever, sabia pouco a respeito. Apenas o senso comum, e mesmo assim, não é um evento que se discuta muito. Aconteceu, todo mundo sabe, mas os pormenores estão nos bancos escolares, depois deixamos de lado. Então, quanto mais pesquisava a respeito, mais me surpreendia. Foi emocionante, nesses primeiros anos de revolução, descobrir que as mulheres não possuíam nenhum status político. Algumas até queriam se envolver mais, mas eram casos isolados. Participavam porque queriam mudança, eram sensíveis a questões como a família, a fome, a precariedade da vida. Quando o preço do pão aumenta muito, a revolução está a caminho. São as mulheres as primeiras a sentir, e a exigir essas mudanças. A revolução promoveu muitos avanços nos direitos sociais, também.
A Revolução em Paris chega aos cinemas num momento de avanço da extrema direita, não só na Europa, mas em todo o mundo. O filme é uma resposta a esse movimento, ou mera coincidência?
Eu me dei conta que a questão do povo, e seu envolvimento político, é um assunto difícil. Há gente que não acredita que tais mudanças possam vir da população. No entanto, a política é a vontade do povo – ou deveria ser. O populismo, portanto, rouba a política do povo. Na revolução, o que provoca tais mudanças é esse debate constante. Acho que o cerne do político é a discussão.
O elenco de A Revolução em Paris conta com alguns dos nomes mais famosos e premiados do cinema francês. Como ele foi pensado?
Consegui quase todo mundo que queria. Há muitos comediantes, por exemplo. E nem todos são tão conhecidos. São atores de teatro, em sua maioria. A cena do pesadelo do rei, com os reis já mortos, conta com a participação do Serge Merlin, que faleceu há pouco. Um dos grandes nomes do nosso teatro. Cada um deles, quando os convidei, aceitou na hora.
E o que falar do Gaspard Ulliel, que interpreta o protagonista? É um nome em ascensão, certo?
Gaspard é um ator magnífico. E achei que ficava fantástico ao lado de Adèle Haenel. Os dois formam um casal incrível, do nível de Humphrey Bogart e Ingrid Bergman! Escrevi o personagem pensando nela, e depois decidi chamá-lo, pois sabia que poderiam funcionar juntos. Afinal, para contracenar com ela, teria que ser alguém com uma imagem muito forte. Ele tem uma presença hipnotizante. E para além da questão política, que é muito importante para o filme, há também um discurso sobre a maneira de se fazer cinema. Formamos um grupo muito unido, estávamos todos na mesma sintonia. A proposta de relação de trabalho é que nos colocou juntos.
(Entrevista feita ao vivo no Rio de Janeiro em junho de 2019)
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