Crítica

O cinema não tardou em colocar em imagens o conteúdo do livro de Valerie Zenatti, cujo enredo gira em torno das tensões envolvendo a Palestina e Israel. Tensão, pois, logo de partida, é essa a ideia que o filme quer vender: ideia de uma atmosfera impaciente, complicada pela violência de ambos os lados. Isto é, o filme de Thierry Binisti ambiciona estabelecer uma ordem que diz que existe um conflito de interesses históricos, condicionado às mais diversas manifestações (religiosas, políticas, sociais), luta de iguais em que os dois lados estão errados e agem com intransigência, possuem diferenças teologicamente imutáveis, e por isso são irreconciliáveis apenas por culpa do extremismo jihadista, do colonialismo, da repressão do exército israelense nos territórios ocupados e em função do terrorismo do Hamas. Nessa estética de um jornalismo imparcial e com toda a ideologia que ele assume (não por ingenuidade, mas como uma atitude ideológica explícita, de fazer a paz para deixar as coisas como estão, isto é: que Israel mantenha os territórios ocupados e que, assim, os povos possam viver em paz), Uma Garrafa no Mar de Gaza é todo construído sobre a diluição da História. Mas sua amostragem está viciada, e se tem uma coisa que o filme evita é a honestidade em relação à vivência de seus personagens, pois toda não-decisão pela neutralidade de um olhar é uma decisão em si: ela favorece quem está vencendo.

A curva dessa relação aparentemente de iguais, exposta como questão meramente territorial e bíblica, é bastante sinuosa. Se por um lado o fim das hostilidades certamente faria bem aos países da região, todavia o filme de Binisti se dedica a filtrar mensagens de amor que nunca fizeram bem aos conflitos entre palestinos e israelenses – o que é importante frisar é que, se essa crítica é possível e se através dela podemos operar alguma análise mais analítica da situação, é porque o filme se mete nessa confusão, se dispõe a filmar um “assunto real” de relevância histórica conectada com o contemporâneo. Que há pessoas de ambas as frentes que querem viver dignamente e longe das explosões genocidas, isso é fato corrente mostrado a qualquer hora em qualquer telejornal – embora as mesmas imagens da televisão não medem esforços para significar e colocar o conflito em termos do terrorismo palestino contra o medo dos judeus que precisam andar de ônibus.

Por outro lado, é claro que há um atravessamento de fronteiras e de laços afetivos criados na intenção de fazer com que o fogo (ela) e a água (ele) se beijem e enlacem uma relação de subjetividades para além do mundo sangrento que habitam, construindo uma poesia da violência, um retrato dos cotidianos que se desejam secretamente. Nesse ponto, há um respiro de cinema, pois parte da forma para o mundo, e não o inverso. Mas ele logo resolve moralizar o debate, julgar os extremistas, separar o lobo do cordeiro de maneira especialmente relaxada. Há sim o bom e o mal (ou no mínimo a vítima incapaz de articular uma potência própria) nessa história toda: o bom é o que inicia as tratativas, propõe o diálogo, que joga a garrafa no mar e quer, a partir de seu conteúdo, ensinar humanidades ao selvagem. Vem da Europa a lição, da França, pois é a jovem francesa Tal (Agathe Bonitzer), que mora em Jerusalém com os pais, que resolve fazer contato com alguém do outro lado. A partir disso, Naïm (Mahmud Shalaby), que é quem passa a se corresponder via e-mail com ela, se liberta. O palestino passa a ambicionar a Europa, quer aprender francês e passear pela Champs-Élysées.

Mesmo que deformado, plano a plano, por uma estética dos reality shows, Uma Garrafa no Mar de Gaza é eficiente em sua mensagem, que é sobretudo política. E mesmo com isso ele é mais atento que um Tarantino (subversivo da História), um Christopher Nolan (subversivo dos heróis) ou um Honoré dos últimos anos (subversivo dos corpos). Ele se pretende desbravador dos desejos e das angústias de seus personagens, quer tirar deles muitas coisas (uma razão de ser, no caso de Tal), algumas que eles sequer possuem (o direito ser, no caso de Naïm). Se o filme tem alguma beleza, de qualquer forma, essa é a beleza mais óbvia e fácil de ser filmada: a do amor impossível, irrealizável, salpicado pela boa bondade das vítimas neutras no debate.

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é crítico de cinema, membro da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do RS. Edita o blog Tudo é Crítica (www.tudoecritica.com.br) e a Revista Aurora (www.grupodecinema.com).
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