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Sinopse

Hitler e Mussolini se encontram em Roma. A cidade fica em polvorosa. Uma dona de casa adepta do fascismo permanece cuidando de seus afazeres domésticos enquanto o marido e os filhos vão saudar o encontro dos mandatários. Ela conhece um vizinho de prédio e os dois acabam ficando muito próximos.

Crítica

Um dia que começou como tantos outros, mas que mesmo assim se anunciava diferente dos demais, acabou por se tornar extraordinário. E com data específica: 6 de maio de 1938, marcado para sempre na memória de muitos como a visita do Adolf Hitler a uma Roma travestida de capital do Império. A família Taberi está em êxtase, e acordam cedo para se arrumarem e saírem para acompanhar a parada e, quem sabe, ver de perto do homem que tanto prometia e de esperança os abarrotava. E não eram únicos: o prédio, a cidade, o país aguardava ansiosamente por aquele momento. Com duas notáveis exceções: Antonietta, que apesar de partilhar dos ideais fascistas do marido e filhos, vizinhos e amigos, sabia que teria que ficar em casa para aproveitar a oportunidade sozinha e colocar as coisas em ordem, e Gabriele, um radialista desempregado que mora no apartamento da janela da frente. Os dois estão perdidos, e precisam desesperadamente se encontrar. Se conseguirão tal feito um nos braços do outro, é um objetivo alcançado apenas em parte. E esse talvez seja o maior mérito de Um Dia Muito Especial, um dos marcos das carreiras dos seus três principais envolvidos: o diretor Ettore Scola e os protagonistas Marcello Mastroianni e Sophia Loren.

Cineasta já estabelecido, quando Scola começou os trabalhos de Um Dia Muito Especial havia realizado antes filmes que colocaram seu nome entre os grandes do cinema italiano, como Feios, Sujos e Malvados (1976) – que lhe deu o prêmio de Direção no Festival de Cannes – ou Nós Que Nos Amávamos Tanto (1974) – que foi premiado pelos críticos italianos de cinema e com o César, na França. Nenhum dos anteriores, no entanto, havia alcançado a repercussão deste que foi seu terceiro longa com Mastroianni e o primeiro com Loren. Tanto é que chegou a receber duas indicações ao Oscar e ganhou o Globo de Ouro de Filme Estrangeiro, conquistou o primeiro David di Donatello (o Oscar italiano) para Scola, e foi premiado ainda pelo National Board of Review (EUA), César (França), Jornalistas Italianos e Globo de Ouro Itália! O mais curioso, no entanto, é como um filme tão discreto, repleto de movimentos silenciosos e dotado de um cuidado primoroso com os detalhes, possa ter despertado tanta atenção.

Um Dia Muito Especial foi a nona parceria nas telas dos quase inseparáveis Mastroianni e Loren – eles apareceriam juntos ainda em mais duas ocasiões. Só que ao invés de voltarem aos personagens que tornaram famosos, como o galanteador irresistível ou a bela voluptuosa, aqui comprovaram suas versatilidades construindo tipos que nunca antes haviam interpretados. O Gabriele dele é um tipo pequeno, discreto, acanhado, combatido pela situação de um país que faz questão de virar as costas para pessoas como ele. Sua condição de homossexual o fez perder o emprego, os amigos e até a casa onde mora: no final daquele dia, sabe que terá que arrumar as malas e partir, pois não há mais ali espaço para ele. Como o próprio diz, não é ele que é contra a ordem vigente: é essa que faz questão de não ter por perto pessoas do seu jeito. Antonietta, por sua vez, é a própria mãe coragem, a primeira a levantar de manhã cedo e a última a ir dormir, aquela que há muito esqueceu da sensação de ter ao seu lado um homem que a deseja, pois tudo que o marido quer é comida na mesa e uma mulher que saiba abrir as pernas na hora de fazer mais um filho. Desaparecidos em si mesmos, os dois se identificam tanto pelo que não tem como por tudo aquilo que poderiam – e tanto sonham – ser.

Ao abrir a gaiola do pássaro de estimação para lhe dar comida, Antonietta se descuida e o bicho escapa pela janela, indo parar no beiral do apartamento de Gabriele. Por isso ela acaba indo até ele, e essa desculpa de um instante qualquer termina por se transformar num período de transformação para os dois. Ela é fascista, e com orgulho, e preserva como único passatempo uma coleção de fotos e reportagens de jornais em um álbum de recortes. Mas o que logo fica evidente é que nem mesmo faz ideia do porquê se comporta desse jeito. Nunca antes teve contato com um homem como ele, e essa fresta de possibilidades que se abre diante de si será como um tornado que irá abalar suas convicções e provocar questionamentos. Tem medo, mas também necessidade. Quer vê-lo de perto, mas sabe que precisa se manter longe. Ao mesmo tempo em que esconde o furo na meia ou arruma o cacho dos cabelos, buscando a aprovação e a admiração daquele na sua frente, também sabe que suas vidas não poderiam ser mais distantes. É apenas um dia que os dois possuem, e por maior que seja a vontade de saírem voando juntos, lhes abate também a certeza de que, passado tudo isso, voltarão à mesma prisão de antes. Se esse retorno será igual, ou de alguma forma voltarão transformados, essa é a verdadeira questão.

Dois dos maiores nomes do cinema italiano – e até mesmo mundial – reunidos para compor personagens que não poderiam lhes ser mais opostos. Apagados, fazem de Um Dia Muito Especial uma jornada de dor e de descobertas, de pequenas vergonhas e grandes prazeres. A entrega que ambos registram é singular no modo maiúsculo como cada um deles se dedica à real natureza destas figuras, pois ao desaparecerem sob eles, criam algo absolutamente único. Como pano de fundo, o discurso intermitente do Führer e do Duce, antecipando promessas vazias e um mundo de desgraças que logo se estenderia sobre todos, não permitem esquecer o quão fugazes são os momentos que estão compartilhando. E o que restará será a lembrança do homem que partiu, da mulher que ficou, e daquele dia em que tudo foi diferente, não mais monocromático, mas colorido, excitante e cheio de possibilidades. Que podem ou não terem se concretizado, pois não é esse o debate: o que os move foi a certeza de que, por ao menos um dia, voltaram a acreditar. E isso foi o bastante para seguirem vivos, juntos ou não.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.

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