Crítica

Quando venceu o Oscar de melhor ator por Beleza Americana (2000), Kevin Spacey dedicou o prêmio a Jack Lemmon, em cujas performances ele se inspirou para compor Lester Burnham, o protagonista do filme de Sam Mendes. Apesar de nesse agradecimento Spacey fazer referência a Se Meu Apartamento Falasse (1960), é provável que Sonhos do Passado, de John G. Avildsen, tenha o personagem de Lemmon que mais se assemelha a Burnham: Harry Stoner, um empresário de meia idade em crise consigo mesmo, que mergulha em lembranças nostálgicas de seu passado enquanto vive sério dilema moral.

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Como Burnham, Stoner experimenta um grande vazio existencial, por não conseguir se conectar com o mundo em que vive, ao mesmo tempo em que lida com problemas infindáveis no trabalho e com um casamento rotineiro. É verdade que não há em Sonhos do Passado os exageros de Beleza Americana, como o comportamento escroto da personagem de Annette Bening ou a busca radical do protagonista por mudanças. O filme de Avildsen é bem mais sutil nesse sentido. A relação que Stoner estabelece com Myra (Laurie Heineman), por exemplo, garota bem mais jovem que ele, não é movida por um desejo sexual incontrolável como acontece com Burnham: trata-se de um esforço genuíno de contato com uma geração muito diferente da sua – e é comovente o desespero do sujeito durante a brincadeira com os nomes de pessoas famosas, ao se dar conta de que Myra praticamente não conhece as celebridades de sua juventude.

Essa impossibilidade de conexão real entre gerações caracteriza a inexorabilidade da passagem do tempo, que está no centro do filme de Avildsen. Se não é possível voltar ao passado (daí as tentativas de Stoner de lembrar a escalação de um antigo time de beisebol serem repetidamente frustradas), tampouco é possível, para quem cresceu em outra época, viver a contemporaneidade sem nenhum estranhamento, sem a sensação de não pertencimento. Aqui Sonhos do Passado volta a se aproximar de Beleza Americana, já que ambos os protagonistas são punidos por não saberem lidar com essa inadequação: Burnham, com a morte (solução radical num filme de radicalismos); Stoner, por meio da simples, mas doída, constatação de que não pode brincar como um igual com as crianças do presente. A ele cabe vê-las se divertindo, crescendo e tomando seu lugar.

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Concomitantemente a esse drama pessoal do personagem de Lemmon, Sonhos do Passado lança um olhar cínico para a América de seu tempo, país marcado pelo fim de certa inocência, por conta do escândalo Watergate (ocorrido em 1972). Stoner, herói da Segunda Guerra Mundial e self-made man representante do espírito empreendedor americano, necessita recorrer ao crime para manter seus negócios funcionando. As conversas que ele tem a esse respeito com Phil (Jack Gilford), seu contador e espécie de bússola moral, são memoráveis e muito sintomáticas da sensação, que atravessa o filme, de paraíso perdido, de ilusões desfeitas sobre o que seriam os valores fundamentais de uma sociedade. Curioso como apenas três anos depois Avildsen fez Rocky: Um Lutador (1976), cujo otimismo, que beira a ingenuidade, com o american dream está no extremo oposto da melancolia e do cinismo devastadores de Sonhos do Passado.

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é um historiador que fez do cinema seu maior prazer, estudando temas ligados à Sétima Arte na graduação, no mestrado e no doutorado. Brinca de escrever sobre filmes na internet desde 2003, mantendo seu atual blog, o Crônicas Cinéfilas, desde 2008. Reza, todos os dias, para seus dois deuses: Billy Wilder e Alfred Hitchcock.
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