Crítica

Pela sinopse, Shame parece ser simples: um homem rico, bonito, bem sucedido e viciado em sexo começa a questionar sua vida com a chegada da irmã depressiva. Poderia ser um grande drama sobre o sentido da vida ou uma comédia pastelão, mas o longa de Steve McQueen se revela absurdamente sensorial. Um filme para refletir sobre nós mesmos e os nossos vícios, mas com muito mais perguntas do que respostas.

O filme já começa com Brandon (Michael Fassbender) em nu frontal, andando pela sala, ignorando o telefone e os recados na secretária eletrônica, indo ao banheiro. E sim, há várias cenas de sexo no filme, mas assim como o drama do personagem, não há beleza ou sensualidade implícitas. A própria fotografia cinzenta ajuda nesta concepção.

A “vergonha” do título original talvez se refira ao que o próprio protagonista sente em relação ao seu vício. O personagem de Fassbender está com a mente 24 horas “naquilo”: ele procura parceiras (e até parceiros) em bares, boates e na própria rua; em casa, suas transas podem ser com prostitutas ou alguém que ele conheceu em uma de suas andanças; no próprio trabalho vive em sites pornôs à procura de um prazer que nunca é adquirido. Em uma das melhores cenas do filme, o chefe de Brandon retira o computador dele, pois “alguém” andou mexendo e entrando nos ditos portais de sexo, ao que o empregado simplesmente responde como se não soubesse quem fez aquilo.

Seus ressentimentos se aprofundam ainda mais quando a irmã (Carey Mulligan, excepcional) resolve passar um tempo junto com ele em seu apartamento. O único lugar em que o personagem conseguia manifestar seus desejos de forma mais aberta é corrompido e, por isso, Brandon vai se afundando cada vez mais em busca de sexo nas ruas, sentindo cada vez menos prazer naquilo e muito mais dor. Uma dor que aparece em cada olhar triste, nas palavras controladas e nos músculos travados que Michael Fassbender coloca em sua extraordinária atuação, uma das melhores (senão a melhor) de 2011. A cena mais emblemática (e maravilhosa) do filme é quando a irmã interpretada por Mulligan canta New York New York numa versão lenta (e linda) enquanto o personagem de Fassbender chora, de forma contida, mostrando a dor que vive.

Este é um filme em que o roteiro é colocado em segundo plano para sentirmos a rotina de um personagem que vive solitário e não consegue se abrir com ninguém. Por sinal, quando ele começa a conversar em um jantar com uma colega de trabalho, Brandon revela sua aversão por relacionamentos sérios. Seu mais longo durou apenas quatro meses. Em outro encontro, quando os dois começam a transar, ele falha. Sim, brocha. Sente-se impotente e trava mais uma vez, deixando ir embora alguém com quem, talvez, ele pudesse ter tido algo mais profundo.

Não temos aqui explicações psicológicas e clichês para a postura de Brandon. Não há nada dito sobre traumas de infância, pais separados ou abusadores, um pé na bunda de algum grande amor. Nada disso. O que temos é um personagem que vive à base de um sexo sem prazer, alguém que está sempre em contato com o corpo de outras pessoas, mas que não consegue se conectar de forma afetiva com ninguém. Nem com a irmã, o que é demonstrado em um dos melhores, mais realistas e, talvez, cruéis diálogos dos últimos tempos no cinema: completamente irritado com as atitudes irresponsáveis da irmã (ou talvez porque veja um reflexo dele mesmo), o personagem começa a questionar porque tem que carrega-la nas costas, pois não foi ele quem a colocou no mundo. Ela responde que é por ser família que uns tem que cuidar dos outros. Será mesmo? Num mundo em que todo mundo se conhece, parece que ninguém aprofunda as relações. E a própria família, que realmente poderia ser considerado o lar sentimental de qualquer pessoa, é colocada em discussão no filme.

Correr ao som do MP3 player é a única válvula de escape do protagonista, que parece realmente sentir falta de relações mais profundas, como evidenciado em (mais) uma cena com o patrão. Enquanto este fala com a família, Brandon fica em pé, ao lado da porta do escritório, prestando atenção em tudo que é falado e sentido, porém sem demonstrar o que ele próprio pensa. O sexo não é gratuito. Pelo menos, não para o filme, mas talvez para o próprio personagem, que o usa como artifício para uma dor que não sabemos exatamente qual é, apenas imaginamos.

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é crítico de cinema, apresentador do Espaço Público Cinema exibido nas TVAL-RS e TVE e membro da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul. Jornalista e especialista em Cinema Expandido pela PUCRS.
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