Crítica

Anna é uma garota moderna, independente. Mora em Atenas, tem seu próprio apartamento, se comunica com os pais nos fins de semana, se dá bem no trabalho, é estimada pelos colegas. Como companheira nos agitos por essa vida contemporânea ela conta com Manu, sua cadela de estimação. A relação das duas é ótima, a ponto de Manu preferir dormir na mesma cama que Anna, e desta levar o animal consigo para o trabalho – deixando-a dentro do carro, no estacionamento, a visita em intervalos regulares, seja para um passeio rápido ou para alimentá-la com restos do próprio almoço. Essa relação bastante próxima, no entanto, está prestes a mudar. Setembro se preocupa em revelar esse abismo emocional que existe na estrutura psicológica daquela que deveria ser dona, e não colega. E se o quadro que pinta possui tintas fortes, lhe falta coragem para concluí-lo com a mesma ousadia.

Certo dia, enquanto passeavam pelas redondezas de onde moram, Manu invade um jardim alheio e passa a brincar com duas crianças da vizinhança. Anna se espanta com a familiaridade da cachorra com os meninos, e ainda mais com a forma receptiva com que ambas são tratadas pela mãe dos pequenos. Tão acostumada está em viver naquele mundo em que somente as duas se bastam que lhe causa estranheza perceber que há possibilidades de trocas emotivas além do círculo tão estreito que habitam. Porém, a trama de Setembro só começará, de fato, quando Manu desfizer esse trato implícito de ficarem para sempre juntas. Afinal, é um cão, e como tal, possui um ciclo de vida mais curto. E após a morte daquela que estava sempre ao seu lado, como Anna seguirá vivendo? O momento em que se percebe totalmente sozinha, num retrato seco e dolorido, abre portas até então desconhecidas, levando-a a atitudes impensadas até então.

É quando decide se aproximar daquela família que tão bem lhes acolheu certa vez, ainda que por meros instantes. É o único relance de calor humano que lhe resta, e ao qual irá se agarrar com intensidade. O homem, pai da casa, repudia a aproximação suspeita. Os filhos, ingênuos, reparam a novidade, mas logo se afeiçoam sem amarras. Será Sofia, a mãe e esposa, que permitirá que a guarda se arrefeça e que um contato maior entre as duas se estabeleça. Mas, por melhor que sejam seus olhos em direção àquela mulher com evidentes carências afetivas, até ela irá notar com o passar do tempo que há algo de errado ali, e que talvez apenas sua concordância não seja suficiente para ajudar quem precisa de outro tipo de apoio.

Escrito e dirigido por Penny Panayotopoulou, realizadora que volta às telas após um hiato de mais de uma década desde seu muito bem sucedido trabalho de estreia – Dyskoloi Apohairetismoi: O Babas Mou (2002), premiado nos festivais de Chicago, Locarno e Thessaloniki, entre outros – Setembro é um filme que aponta para caminhos interessantes de serem trilhados, mas que falha em assumir essas posições mais surpreendentes e menos fáceis. Se a protagonista, em determinadas passagens, assume uma posição mista entre admiradora e usurpadora, a partir de uma narrativa que nunca a coloca numa posição de evidente ameaça,  ela termina por perder sua intensidade justamente por frustrar as expectativas levantadas. Não que atender ao esperado fosse o mais inteligente – o óbvio nunca é satisfatório – mas também não há surpresa alguma em sua conclusão. E assim tem-se um filme que consegue com mérito colocar sua ação em um ambiente que desperta atenção, porém falha no mais básico: assumir suas intenções mais radicais.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.

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