Crítica

O que é ficção e o que é realidade nos dias de hoje? Se a grande ficção cada vez mais busca de aproximar do real – é só perceber a crescente onda de filmes feitos no estilo câmera na mão, muito mais documental – e, num sentido inverso, todo registro da vida real tende a ser encenado do início ao fim – que o digam os participantes dos realitys shows tão populares nos canais de televisão – como estabelecer limites precisos entre um registro e outro? Antes disso, no entanto, poderíamos nos perguntar: qual a razão desta – ou de qualquer outra – separação? O final não é sempre o mesmo: entretenimento? Ou é possível se almejar algo além: posteridade, memória, arte? Questões como essas, tão presentes e atuais, estão no centro do debate proposto por Paisagens Devoradas, longa escrito e dirigido por um dos mais emblemáticos e ativos cineastas argentinos, Eliseo Subiela.

Realizado em 2012 – quase que ao mesmo tempo em que o cineasta dava início à Rehén de Ilusiones, seu trabalho seguinte – Paisagens Devoradas permanece inédito no circuito comercial brasileiro, ainda que tenha ganhado algum espaço em festivais e mostras internacionais. Sorte, portanto, dos poucos que tiveram acesso a esta história que combina a paixão pelo cinema com noções de verdade e mentira, ensino e aprendizado, academicismo e inovação. A ação é conduzida por três estudantes que sonham se tornar cineastas e, para isso, decidem realizar um documentário com um senhor, paciente de um hospital psiquiátrico, que afirma ser um importante diretor cinematográfico, já há muito esquecido. Encaradas com galhofa pelos jovens, tais afirmações vão se mostrando curiosamente próximas da realidade, com estranhas coincidências, colocando em cheque suas crenças e noções de certo e errado.

O melhor de Paisagens Devoradas é a forma como o realizador, habilmente, vai conduzindo o espectador pelo mesmo caminho que seus protagonistas, sem apressar o passo, mas também desvelando o mistério aos poucos, permitindo que cada um tire suas próprias conclusões. Tal tranquilidade só poderia ser possível através das mãos de um realizador tão experiente quanto Subiela. Duas vezes premiado no Festival de Berlim (por Argentina, mayo de 1969: los caminhos de la liberación, 1969; e por Últimas imágenes del naufrágio, 1989), na Mostra Internacional de São Paulo (por Homem Mirando ao Sudeste, 1986) e até no Festival de Gramado (O Lado Obscuro do Coração, 1992), entre tantos outros lugares e festivais, Eliseo Subiela ainda é, inacreditavelmente, um cineasta distante do público menos especializado. Esse novo trabalho, no entanto, poderia servir perfeitamente de porta de entrada para essa obra singular, seja por sua simplicidade no formato ou pelas diversas leituras que seu conteúdo permite.

Um grande acerto de Paisagens Devoradas foi a escolha do “pai do novo cinema latino-americano”, Fernando Birri, para interpretar o enigmático personagem que muito diz mais pouco revela. Premiado no Festival de Veneza, Birri realizou importantes documentários no final do século passado e deixou sua marca inventiva e original do cinema argentino. Agora, volta às telas quase como um profeta, afirmando certezas dúbias e levantando, mais uma vez, importantes discussões. Sejam as palavras de Subiela ou de Birri, o que importa é que ganham vida num filme envolvente, que contamina o espectador com importantes questionamentos, acompanhando-o para longe da sala de cinema ainda por um bom tempo. Coisa que somente o cinema relevante consegue fazer com efeito.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.

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