Crítica

Poucas coisas são tão pessoais e trazem tantas lembranças quanto a casa em que se cresceu. Existe um apego, não só com os objetos, mas com o espaço que remonta uma história lá dentro vivida. E quando este lugar está prestes a dar adeus, por um motivo ou outro, é chegada a hora de parar e pensar um pouco em tudo o que passou. O diretor Diogo Oliveira se viu neste movimento reflexivo quando seu pai, José Mauro, e sua companheira de vida, a empregada doméstica Hilda, começaram a mudança que representaria o final de um capítulo longo naquele cotidiano, algo por volta de 35 anos. Ao lado de João Torres, Oliveira comanda essa história bastante pessoal, um documentário observacional que acompanha excertos do dia a dia daquela dupla idosa – e a inclusão do próprio Diogo naquele cenário, algo que acaba por mostrar um distanciamento entre pai e filho. Em poucas palavras, isso é Os Pássaros Estão Distraídos.

Neste documentário, as informações são esparsas e os cineastas não se sentem impelidos em nos ceder de mão beijada o que estamos acompanhando. Ouvimos uma ligação telefônica entre um homem e uma mulher, ambos idosos, afetuosos um com o outro, embora sem muito o que conversar. Não fica claro se eles são um casal logo de início, mas sim que existe uma relação de dependência. Eles são Hilda e José Mauro. No decorrer da história, sabemos da mudança que se avizinha, quando ela precisa juntar os objetos da casa, mesmo que não pertençam a ela. Com um telefonema entre Hilda e Diogo, entendemos que ela não tem grau de parentesco com o rapaz, mas que existe uma relação de proximidade. Ele surge para ajudar naquele momento e observa seu passado ali preservado.

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O tempo é algo muito importante neste documentário e o ritmo lento dos protagonistas é bem capturado pela dupla de cineastas. Tudo acontece mais devagar e com maior dificuldade, devido à idade avançada do casal. Por isso, até os créditos iniciais parecem demorar mais, aparecendo muito tempo depois do início do filme. Pequenos gestos e atos como fechar uma garrafa térmica, andar de um cômodo ao outro ou mesmo se comunicar via telefone demandam esse tempo estendido, que Torres e Oliveira transformam em cenas propositalmente longas, para dar ao espectador a dimensão daquela residência anacrônica, que vive um outro ritmo. Para maximizar essa quebra, observamos José Mauro deitado em sua cama, assistindo aos movimentos rápidos de Jennifer Beals no filme Flashdance (1983) – cena espelhada com outra, mais adiante no documentário, na qual Diogo Oliveira surge dançante ao som de Madonna, enquanto organizava a mudança do pai. Esses pequenos momentos de movimento apenas acentuam a lentidão do restante da trama.

Utilizando da câmera em movimentos circulares por boa parte do filme, Oliveira e Torres capturam aqueles momentos prévios à tão anunciada mudança, embora nunca a mostrem de fato. O que é importante para eles é como Hilda e José Mauro reagem à situação – ela, resignada; ele, nervoso, se queixando de males do estômago que nunca o abandonam. Outra questão curiosa é o fato de pai e filho nunca trocarem palavra. Hilda serve como um elo entre os dois, que nem no mesmo quadro aparecem. Certamente existe algo ruído na relação, mas que é deixado em aberto pelo documentário. Não espere respostas.

O que vemos é um universo pequeno, singelo e muito pessoal que a dupla de diretores traz ao público. É possível que a narrativa lenta e o microcosmos daquele cenário afastem boa parte dos espectadores. Os Pássaros Estão Distraídos não é um documentário que se comunica facilmente, é verdade. Mas quem deseja embarcar em uma jornada pessoal ao lado de Diogo Oliveira e João Torres, pode se surpreender com as minúcias que ali são retratadas.

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é crítico de cinema, membro da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul. Jornalista, produz e apresenta o programa de cinema Moviola, transmitido pela Rádio Unisinos FM 103.3. É também editor do blog Paradoxo.
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