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Sinopse

Maria Bethania, ícone da música brasileira. Cleonice Berardinelli, imortal da Academia Brasileira de Letras. A união de dois grandes nomes do país lendo obras de um terceiro: Fernando Pessoa. Por dois dias - um deles com plateia, elas leram poemas do artista, em uma versão gravada da mesa mais concorrida da Festa Literária de Paraty 2013.

Crítica

A proposta de O Vento Lá Fora é ousada cinematograficamente, embora soe, em princípio, simples. Arte da imagem, aqui o cinema precisa, supostamente, se curvar à palavra, não a qualquer uma, mas a de Fernando Pessoa e seus heterônimos. O filme faz um esforço admirável de síntese, valendo-se do registro de leituras do poeta português, levadas a cabo por Cleonice Berardinelli, grande especialista em literatura portuguesa, e Maria Bethânia, uma das vozes mais bonitas da música popular brasileira. Duas mulheres intimamente ligadas à obra de Pessoa, diga-se. A primeira, considerada a maior autoridade tupiniquim do legado do patrício; a segunda, cantora que frequentemente utiliza os versos dele em shows e discos. O cineasta Marcio Debellian se vale da belíssima fotografia em preto e branco para deflagrar, em meio às declamações, de forma sutil e bastante expressiva, as texturas, sejam elas literais ou metafóricas/poéticas.

O Vento Lá Fora, portanto, não se contenta em apoiar-se na força da herança de Fernando Pessoa, nas ressonâncias de seus dizeres que, uma vez em harmonia, revelam muito sobre o âmago de um artista profundamente sensível. Gradativamente, o processo de leitura e absorção ganha vida própria, bem como a interação entre essas apaixonadas que se convertem em instrumento de propagação. Bethânia se coloca na posição de aluna reverente do conhecimento e da dedicação de Cleonice, catedrática atenta, inclusive, à métrica. Ela não se constrange em corrigir a entonação da colega, pois o principal é fazer jus à genialidade do poeta e, obviamente, das múltiplas personas criadas para dar vazão aos impulsos criativos que lhe vinham de diversas fontes. A apreciação adensa a relação de cumplicidade oriunda da afinidade prévia. Ambas sorvem a declamação uma da outra, completando-a à sua maneira.

Marcio Debellian movimenta a câmera com parcimônia, evitando desviar o foco da oralidade, mas tampouco se furtando de contribuir visualmente à substância de O Vento Lá Fora. São sintomáticos dessa consciência os planos de detalhe, especialmente os closes bonitos de Celonice e Bethânia enquanto ambas reverberam os escritos de Pessoa. Em sentido complementar, na condição de “atrizes”, elas não se limitam a reproduzir, preocupando-se em contribuir ativamente, de fato interpretando os poemas, ocasionalmente interrompendo as sessões para constatar o quão bonito e profundo é o material original. De vez em quando, a câmera flagra as duas numa área externa, conversando sobre o trabalho desenvolvido em conjunto, alargando o instante de criação mútuo, cujo resultado é o substrato de um longa-metragem que poderia cair nas armadilhas da sua proposta, mas que, felizmente, as evita.

O alinhavar dos poemas é outro mérito a ser destacado em O Vento Lá Fora. O roteiro consegue estabelecer afinidade entre peças que aparentemente versam sobre coisas distintas, como a amargura do poeta diante das desilusões amorosas ou a indignação dele ante a desigualdade do mundo. Há, também, um aspecto didático muito bem utilizado por Debellian, que permite a Cleonice explanar, na medida certa, acerca de Fernando Pessoa, da imprescindibilidade de seus heterônimos e da importância desse verdadeiro gênio da raça para a literatura mundial. Bethânia, por sua vez, coloca-se inteiramente à disposição da poesia, injetando sentimento, haja vista as pausas providenciais entre os versos. É um filme deliberadamente atento à palavra, que parte dessa força para edificar um percurso singelo e franco, mas deveras eficiente como suporte desta bonita e singular declaração de amor à arte.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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