Crítica

A imagem que o mundo guardou de Marilyn Monroe é a da jovem loira irresistível, que não possui muita consciência do seu próprio poder de atração e que, por isso mesmo, se torna ainda mais sexy. Num determinado momento de sua curta carreira ela aparenta ter se acostumado com essa ideia e se rendido ao clichê de si mesma, mas nem sempre foi assim. Alguns dos seus principais trabalhos, principalmente antes da fama arrebatadora, demonstram uma vontade de fazer algo diferente e desafiador. Um dos melhores exemplos dessa iniciativa é este O Rio das Almas Perdidas, o único legítimo faroeste de sua filmografia – anos depois ela realizaria Nunca Fui Santa (1956) e Os Desajustados (1961), ambos com ambientação próxima, mas não inteiramente dentro dos padrões do gênero. Aqui, por sua vez, o cenário está completo, e a vemos em pleno saloon, fugindo de índios e torcendo pelo amado em duelos ao pôr-do-sol (ou quase isso). E é bom vê-la num registro mais histórico, distante do contemporâneo, mesmo que contra sua própria vontade.

Tanto Marilyn Monroe quanto o diretor Otto Preminger (que em toda sua carreira recebeu 3 indicações ao Oscar, inclusive pelo clássico Anatomia de um Crime, de 1959) declararam não aprovar o resultado final, e que de início teriam aceito realizar esse projeto por insistência do estúdio. Mas ao menos neste caso a pressão parece ter funcionado, e a despeito da resistência da atriz e do cineasta temos um filme bastante interessante, que envolve na medida certa e agrada exatamente por saber lidar habilmente com elementos que fizeram sua popularidade. Robert Mitchum, o protagonista, é o típico macho do oeste selvagem, disposto a tudo para defender sua família e seus valores. Colocá-lo ao lado da fulgurante Monroe parece ser uma escolha arriscada, mas a química que surge entre os dois comprova que a aposta não só deu certo, como também agradou em cheio, fazendo desde um dos grandes sucessos de bilheteria de 1954.

O Rio das Almas Perdidas conta a história de Matt Calder (Mitchum), homem solitário que decide reencontrar o filho pequeno, abandonado anos antes. Juntos, os dois partem para o campo, onde tudo o que desejam é cuidar do arado e permanecer longe de encrencas, tanto com os índios como também com os garimpeiros atrás de minas de ouro. É claro que esta intenção não irá durar por muito tempo, e seus caminhos irão cruzar com o do aventureiro Harry (Rory Calhoun, visto também em Como agarrar um milionário, 1953), que junto com sua noiva, a cantora Kay (Monroe), precisa chegar a uma cidade distante o mais rápido possível para registrar a mina que ganhou no jogo de cartas. Sem ter como providenciar uma viagem até seu destino, ele abandona a mulher e rouba o rifle e o cavalo do fazendeiro. Sozinhos à mercê de qualquer invasor, Calder, Kay e o menino terão que enfrentar o rio bravio às margens da fazenda numa jangada improvisada, pois este será o único modo não só de recuperarem o que lhes foi tirado, como também fugir dos ataques de estranhos e selvagens.

Marcado pelo perfeccionismo de Preminger, O Rio das Almas Perdidas quase não chegou ao fim, pois tanto Monroe quanto Mitchum por pouco não morreram afogados durante as filmagens. Mas tantas exigências resultaram num filme ágil, que prende a atenção e, entre bons momentos de ação e interpretações convincentes, se apresenta como um entretenimento competente e atraente. Marilyn segue linda, mas aparece desglamourizada, lutando pela sobrevivência e resistindo com todas as suas forças a se entregar ao amor evidente que surge, aos poucos, entre ela aquele homem calado e de fortes atitudes. Não que ela esteja muito diferente da personalidade que nos acostumamos a vê-la, mas oferece uma variação, ainda que discreta, que já aponta para uma intérprete em busca de respeito e de desafios que testem suas próprias limitações.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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