Mormaço

12 ANOS 94 minutos
Direção:
Título original: Mormaço
Ano:
País de origem: Brasil

Crítica

3.6

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Sinopse

Ana é uma jovem defensora pública que trabalha em uma comunidade no Rio de Janeiro, assolada pela especulação imobiliária que atinge níveis extremos às vésperas das Olimpíadas de 2016. Ao iniciar um romance inesperado, ela começa a apresentar sintomas de uma doença misteriosa que, aos poucos, toma seu corpo e espírito.

Crítica

O calor chegou. E está por todos os lados. As temperaturas são altas num dos piores verões que o Rio de Janeiro já enfrentou. Dele não há como escapar. Nem mesmo em casa, em frente ao ventilador, com as janelas abertas ou sentada diante de uma geladeira escancarada. Nada alivia: um banho de piscina, uma água da bica, uma mangueira desprevenida: o suor toma conta, o mal-estar é geral. Assim como os ânimos dos personagens de Mormaço, longa escrito e dirigido por Marina Meliande, cujo roteiro foi finalizado em parceria com Felipe Bragança (Não Devore Meu Coração, 2017). Pois se lá fora está ruim, dentro deles a situação é ainda pior. E esse sentimento, que corrompe e contamina, não permanecerá restrito por muito tempo em um âmbito ou outro. Os limites estão se rompendo. E quando não houver mais diferenças entre o lá e o cá, como será possível sobreviver?

Ana é uma advogada preocupada com a questão social da cidade onde vive. Às vésperas das Olimpíadas de 2016, se vê tendo que lidar com duas situações similares, ainda que em ambientes distantes. Está ocupada com a defesa dos moradores de uma vila popular que estão sendo despejados por causa do plano olímpico, que possui interesses naquela geografia específica. “Não vamos perder nossas casas, que lutamos uma vida inteira para construir, por causa de um evento de apenas um mês”, grita um deles, durante um protesto contra os agentes da prefeitura, que querem desalojá-los, por bem ou por mal. O único elo entre os menos favorecidos, cansados de repressão, maltratos e violência por parte do Estado, e a possibilidade de uma vida digna, está nas costas da protagonista. E é justamente ali, próximo ao pescoço de alguém que se sente em constante ameaça, onde o verdadeiro mal começa a, de fato, se manifestar.

Pois Ana também está correndo o risco de perder onde mora – ou, melhor dizendo, se ver obrigada a encontrar um novo apartamento para chamar de seu. Seu endereço é na zona sul, ambiente dito mais tranquilo, mas também muito visado. Tanto que o prédio que habita está para ser vendido para uma grande construtora, que quer fazer, dele, um novo hotel. Nem todos os moradores estão satisfeitos com a possibilidade de mudança. Quem sai, vai para onde? E os que ficam para trás, que condições terão que enfrentar? Como ser o apoio de uns, quando nem mesmo consegue se manter em pé? Para o outro lado do corredor se muda Pedro (Pedro Gracindo, filho de Gracindo Jr), o arquiteto responsável pela avaliação e renovação do prédio. Ele é o vilão, mas é possível agir com a razão, quando os instintos começam a falar mais alto? Seja de um olhar na beira da piscina a uma conversa porta a porta durante um apagão, a atração entre os dois é evidente. Ainda que ela tenha coisas mais urgentes com o que se ocupar.

Pois Meliande e Bragança estão um passo além do real. O terreno pelo qual escolheram desenvolver sua história habita outras relações, indo do fantástico a um naturalismo quase impossível. Tudo parece muito normal, até o momento em que deixa de ser. Uma mancha na pele pode ser apenas uma irritação, sinal de stress. Mas a coceira não dá trégua, e a sombra que cresce pelo corpo vai se espalhando, dominando costas, peito, pernas e braços. Quando menos percebe, estará também pelas paredes, eclipsando visões e dominando cenários. A manifestação, cuja única explicação parece ser sobrenatural, atormenta e preocupa, abate e derruba, mas também encontra forças em toda a turbulência ao seu redor. Sejam as injustiças sociais, os gritos de socorro, as forças armadas sem rosto, escondidas por detrás de máscaras que não apenas lhes roubam identidades, mas também protegem daqueles que nem mesmo força para ataque possuem. Mormaço inebria, desmaia e exaure, corpo e alma, mente e físico.

Marina Meliande começa seu filme com cenas de forte impacto visual, e durante a narrativa procura aproveitar, sempre que propício, trechos reais, que surgem intercalados com a trama ficcional. Mesmo assim, não se rende à uma necessidade de estar com os pés no chão, permitindo-se imaginar outros desfechos para seus personagens, indo do onírico ao grotesco. Para tanto, conta com a entrega total de Marina Provenzzano, que assume a pele e a perturbação desta protagonista sem meios termos. É nela onde irão residir as atenções dos espectadores, tanto no momento em que se levanta e enfrenta, como, principalmente, quando cai e se deixa levar. Mormaço é assim, não permitindo redenção, apostando no desconforto, em ambos os lados da tela, para provocar mudanças que, espera-se, não venham tarde demais. Afinal, os dramas de uns e de outros não são tão distantes assim como muitos gostariam de acreditar. Assim como o impossível, que está a apenas um respiro para se tornar concreto. Basta apenas acreditar. E viver, até o último instante.

Robledo Milani

é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.

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