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Sinopse

A história de Inácio, 40 anos, casado, sem emprego fixo. Ex-gari, ele trabalha como dublê de dançarino e mecânico na oficina Barato da Pesada, onde sonha com a Moça do Calendário.

Crítica

O protagonista de A Moça do Calendário, longa-metragem dirigido por Helena Ignez com base num roteiro inédito de Rogério Sganzerla – seu falecido parceiro de vida e criação –, é um representante do proletariado. Inácio (André Guerreiro Lopes) trabalha numa mecânica de automóveis. Aliás, as cenas no seu local de labuta possuem uma atmosfera singular, pois fotografadas num preto e branco responsável por instaurar um clima onírico. Nesse espaço marcado pelas sucessivas broncas do patrão, o tempo transcorre de maneira distinta, com nada, ou pouca coisa, que diga respeito aos anseios do homem de cabelos loiros. O único elemento colorido no ambiente enfadonho em que se reproduzem os vícios do esqueleto capitalista é a fotografia de uma mulher de vermelho, sentada languidamente sobre um jipe. A imagem é um oásis de beleza a esse sujeito açoitado por crises constantes, que permite a confusão entre um existencialismo profundo e as dores prosaicas, um tanto banais.

Não há em A Moça do Calendário uma progressão aferrada à linearidade cronológica, ou, ao menos, prescinde-se do atrelamento do relógio aos anseios urgentes dos personagens. Inácio é cada vez mais tragado para o caos da cidade, ao emaranhado de sons e interferências características de uma metrópole pulsante e desigual como São Paulo. A câmera o acompanha com interesse por diversos ambientes, do boteco onde constantemente atraca para mitigar, através do álcool, um pouco a angústia permanente, à clínica vanguardista, concebida cenograficamente como um espaço propositalmente artificial que vende a ideia de diagnósticos revolucionários. Helena Ignez, além de condutora dessa viagem insólita por camadas operárias, volta e meia surge como narradora, proferindo sentenças acerca da conturbada vivência pública, priorizando o amor em detrimento da desesperança vigente. O filme acaba se tornando uma espécie de elegia à geração esgotada pela dinâmica industrial.

As pessoas do filme são como estrofes de um poema libertário, exposto desbragadamente na tela com a verve anárquico-sentimental contumaz dos filmes de Helena, talvez a única cineasta do momento que consegue acessar os códigos do cinema dito "marginal" com propriedade e pujança. Dentro dessa estrutura livre das amarras da narrativa convencional, os mecânicos declamam enquanto as lógicas empregatícias são desnudadas em meio a alegorias. Mario Bortolotto surge na tela como um arauto, persona anacrônica que reflete sobre a sua era convulsionada entre cervejas, refutando o aburguesamento do pensamento acadêmico. O discurso de A Moça do Calendário busca a valorização do popular, das classes trabalhadoras, inclusive como portadoras de uma sabedoria insondável. Ao protagonista é permitido sonhar, divagar com a musa inspiradora, não por acaso trajada, no plano da idealização, com um vestido vermelho semelhante ao de Sônia Silk, o emblema de Copacabana Mon Amour (1970).

A obra de Rogério Sganzerla é referenciada, ainda, com a exibição no computador do mecânico de excertos de Sem Essa, Aranha (1970). Inácio, como que para construir para si uma instância lúdica, imita Zé Bonitinho, o “perigote das mulheres”, figura concebida por Jorge Loredo. Diferentemente do que se possa imaginar, Djin Sganzerla, intérprete do objeto de adoração de Inácio, na esfera sublime, e da articuladora do MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, no âmbito concreto, não se presta ao puro papel de catalisadora. Inclusive, o filme se ressente de sua ausência, já que, presente, ela ilumina o quadro com beleza e expressividade. O fato de Inácio ser filho de latifundiários cria uma tensão social infelizmente pouco aproveitada por Helena Ignez. Todavia, mesmo não isento de arestas, A Moça do Calendário aborda, metafórica e literalmente, provocando deliberadamente confusão entre essas duas instâncias, as contradições do país, os efeitos colaterais da luta de classes, sem descuidar do subjetivismo.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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