Loving: Uma História de Amor

Crítica

Richard e Mildred, interpretados em Loving por Joel Edgerton e Ruth Negga, passam bons bocados, inclusive judicialmente, porque se amam. Nos Estados Unidos do fim dos anos 1950, época em que a trama é ambientada, casais inter-raciais são considerados uma afronta à moral e aos bons costumes. Sendo assim, suas uniões são vetadas constitucionalmente em alguns estados, inclusive na Virgínia, onde a história se passa. Baseados nisso, munidos de razão legal, policiais invadem o quarto dos recém-casados no meio da noite, levando-os ao cárcere, ignorando o matrimônio sacramentado em Washington. Baseado num notório episódio real, o cineasta Jeff Nichols cria este drama que expõe a mão pesada da intolerância institucionalizada, contrapondo a violência descabida com a potência de um sentimento persistente, mesmo diante de toda sorte de adversidades. Mais do que desenhar um percurso laudatório, Nichols está preocupado em revolver o passado não tão distante, fazendo da lembrança uma ferramenta.

Homem simples, o protagonista masculino de Loving é vivido com bastante intensidade por Joel Edgerton. A coragem com que enfrenta um sistema hostil para garantir a felicidade ao lado da mulher por quem se apaixona inapelavelmente é louvável, algo possível com tanta expressividade por conta da maneira como o cineasta o conduz pelas veredas do enredo, mas, especialmente, em virtude da excelência da composição minuciosa do ator australiano. Mesmo em meio ao crescente clamor por direitos civis, esse trabalhador interiorano, que gasta boa parte de seu tempo livre mexendo em motores de automóveis, não almeja mudar o status quo. Suas aspirações são de cunho particular. Todavia, a experiência ao lado de Mildred serve, de fato, como exemplo, propiciando uma alteração histórica nas regras estadunidenses. Obrigado a se exilar num local menos retrógrado, o casal constrói uma vida longe das raízes. Essa distância cobra um preço, tornando urgente a batalha.

Loving apresenta um bom contraste entre a tacanhez provinciana e o progressismo que começa a ganhar vez nas metrópoles. A certa altura do filme, Martin Luther King é visto na televisão, numa cruzada por igualdade, ecoando num âmbito amplo o que os Loving reivindicavam à sua intimidade. Depois dos anos na capital federal, em princípio sem qualquer necessidade de mexer no vespeiro novamente, Mildred decide encabeçar um movimento complexo que a permita voltar para casa. Desse ponto em diante há uma inversão, pois a esposa passa a ser o elo forte do casal, tomando a dianteira das tratativas jurídicas, dando conta de alimentar a imprensa interessada pelo caso, entre outros expedientes que deflagram sua intensidade até ali eclipsada pelo senso de proteção de Richard. Embora apele a determinados expedientes questionáveis – como a montagem paralela das cenas cujo ápice é a confluência dramática de acidentes – Jeff Nichols mostra outra realização de nível, para dizer o mínimo.

Ao largo dos esforços hercúleos, há todo um cenário de segregação que legitima atos espúrios justamente motivados pelo racismo. O grande desempenho do elenco, com destaque especial ao aqui excepcional Joel Edgerton, é um dos pilares principais do filme. A despeito de algumas fragilidades do roteiro, vistas, sobretudo, em recorrências dispensáveis e na diminuição gradativa da importância dos coadjuvantes, Loving é um retrato, ao mesmo tempo, contundente e afetivo dessa passagem emblemática. Profundamente ligados à suas origens, os amantes-protagonistas voltam repetidas vezes aos seus respectivos seios familiares em busca de portos seguros. Ainda que bravamente resistentes no centro de um furacão, durante a sequência da rotina, da criação dos filhos, Richard e Mildred Loving demonstram fraquezas e dúvidas, nada, porém, que abale as estruturas de sua vontade de viver juntos, contra a lei e a mesquinhez então vigentes, como infelizmente foi necessário para quebrar paradigmas.

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Marcelo Müller

Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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