Crítica

Liv & Ingmar: Uma História de Amor é o primeiro longa-metragem do cineasta indiano Dheeraj Akolkar (vinha de dois documentários de curta duração). Há nele muito do bom cinema de entrevistas e muito do mais defeituoso. O frescor que o acompanha é fruto de algumas escolhas claramente direcionadas à estrutura da trama. Nada de declarações sobre os filmes de Bergman de um ponto de vista narrativo ou estético. A busca do diretor consiste em revelar uma relação que transcende o espaço fílmico, no que se confunde e se enreda com ele – tanto seus melhores quanto seus piores momentos transitam entre essa difusão de comportamentos do animal humano; a alegria daqui se conecta com a dor de lá. Uma síntese de fúrias, sorrisos e lágrimas se imiscuem com o resgate histórico (a memória, sempre ela) que o documentarista deseja registrar. O trabalho com os primeiros filmes, a amizade e a paixão que durou algumas décadas entre a atriz Liv Ullmann e o cineasta Ingmar Bergman são partes do material a ser investigado pela câmera. Não é qualquer coisa, e não o é justamente pela dificuldade em tratar de uma relação atravessada por acontecimentos conturbados e pecaminosos.

A ideia é clara: deixar Liv confessar boa parte de seu envolvimento com o cineasta sueco através de experiências mentais bastante fixas em sua memória. A imparcialidade assumida (o ponto de vista é, logicamente, o de Liv Ullmann; não há outros entrevistados) é precisa ao deixar que ela se perca falando, e acaba revelando um Bergman extremamente ciumento e controlador – algo que, pelo que se entende, foi um dos motivos para acelerar o rompimento da relação amorosa entre eles. Quando se conheceram, ela tinha menos de trinta anos e ele mais de quarenta. De uma relação de trabalho nasce uma vida de casal apertada pelo amor – amor que se torna crucial para a separação, mas também para a união eterna.

Já sua feiura opera no nível mecânico. Se por um lado a entrevista rende uma narrativa que escapa à vulgaridade do documentário contemporâneo padrão (com sua tentativa de planificar os sentimentos do espectador rumo à catarse final), por outro demonstra alguma deficiência ao amortizar os sentimentos de tudo que poderia brotar do espaço fílmico através de uma trilha sonora ocupada demais em enfatizar as coisas. Além disso, numa espécie de ditadura das imagens, há sempre a sobreposição de cenas de filmes de Bergman emparelhando com o momento discursivo da entrevistada, uma montagem de obviedades que contrasta com a própria pulsação das palavras e do olhar de Ulmann. A reiteração daquilo que existe (a força do relato) enforca a necessidade de planos do mar e das flores.

A essência de todo o discurso, bem como sua expressão mais dura, já estava ali, escrita naquele rosto agora enrugado, mas pulsante e cheio de calor e desejos. Liv explode na tela com a potência de uma imagem memorável porque é resultado de operações cinematográficas focadas na iminência de sua voz, sua palavra. Nesse sentido, o filme de Akolkar sabe escutá-la, ainda que com toda a impaciência que se escancara com a insistência do piano e dos planos estáticos da praia pontuando a conversa. Há todo um ritmo ali, uma simbologia muito particular, um excerto da vida e da arte em comunhão, mas são coisas que perdem força diante de interferências “estéticas”. A gravidade da má manipulação dos recursos complementares pode ser fatal ao documentário, pois lhe suga a expressividade e a coragem do relato, que é sua substância mais valiosa. O filme, que é antes uma história da própria Liv Ullmann do que de Bergman, desnaturaliza a correnteza desse resgate memorável de situações e enredos (contados cinematograficamente, aliás, pois o filme se serve bem da gigante que filma em planos fechadíssimos), saindo por algumas facilidades, acertando meio sem querer, errando meio inconscientemente.

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é crítico de cinema, membro da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do RS. Edita o blog Tudo é Crítica (www.tudoecritica.com.br) e a Revista Aurora (www.grupodecinema.com).
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