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Sinopse

Pedro é um enfermeiro solitário diante do estado terminal da amiga transexual que se recusa a prologar o inevitável. Melancólico, mas desejoso, ele abriga um jovem criminoso em sua casa, com isso ganhando uma insólita companhia, inciando um envolvimento tórrido, de proporções insondáveis, para esse sujeito casmurro e ensimesmado. 

Crítica

Pedro (Marco Nanini) não é um protagonista necessariamente bom, no sentido estrito da exibição de virtudes imediatamente reconhecíveis que poderiam o circunscrever na lógica de uma moral vigente. Ele não se guia por padrões éticos, tampouco barganha pela empatia do espectador com decisões e gestos samaritanos e/ou altruístas, às vezes bem pelo contrário. Esse enfermeiro utiliza o hospital no qual trabalha a fim de encontrar emplastros para a sua profunda solidão. Masturba um internado que posteriormente lhe nega contato, ajuda um meliante se isso possivelmente significar uma dose de afago que arrefeça uma crônica insuficiência. Esse peso dramático está estampado no semblante do sujeito atravessado por uma dose considerável de infortúnios, a começar pela iminência da morte de sua vizinha transexual Daniela (Denise Weinberg), cujos rins estão em processo de falência. Greta é um filme intermitentemente com os pés fincados no lúgubre. As paixões e os tesões se opõem muitas vezes à inevitabilidade da morte. Os ambientes escuros e carregados denotam isso.

O cineasta Armando Praça desenvolve Greta ora pendendo para o drama internalizado, contido ao limite do suportável, ora burilando os contornos histriônicos do melodrama (especialmente o almodovariano). Mas o longa-metragem não funcionaria sem o trabalho excepcional de Nanini, intérprete que constrói Pedro com uma consistência comovente e mobilizadora. A forma levemente pausada de falar que denuncia a fragilidade travestida de força faz desse personagem um centro gravitacional incontornável. Os coadjuvantes estão muito bem em cena, mas, sem a pujança do profissional da saúde que cura feridas e praticamente cobra em troca um pouco de carinho, o conjunto simplesmente empalideceria. Há uma austeridade visual, advinda, especialmente, dos enquadramentos fixos e da recusa de ofertar banalmente o contracampo. Essa rigidez formal poderia gerar uma sensação de engessamento, mas acaba sublinhando os dramas pessoais. Afora algumas pequenas arestas, como certas transições abruptas, por exemplo, o resultado é bastante tocante.

Há vários símbolos que permitem uma levíssima camada onírica nas bordas de Greta. Uma dela é a composição estilizada do hospital no qual parte da trama se passa. Antes de tudo, por ser um local depauperado, dois tons acima do real, algo corroborado pela ausência da luminosidade adequada. A outra tange diretamente ao cinema, com o imaginário em torno da atriz Greta Garbo desempenhando uma função essencial por seu simbolismo. A sentença “eu quero ficar sozinha”, originalmente proferida pela atriz sueca em Grande Hotel (1932), é repetida por Pedro como um mantra que lhe dá força, sobretudo por pretensamente afasta-lo da inclinação por um apego desbragado. Jean (Demick Lopes), o assassino que pede guarita e se torna um obscuro objeto de desejo, cumpre esse papel de mediação entre a vida e a morte, no limiar entre Eros (pulsão sexual) e Tânato (pulsão de morte). Também por conta disso, o hospital abriga várias cenas de sexo.

Há determinadas transições e excertos um tanto bruscos em Greta, senões característicos de uma primeira direção de longas-metragens. O vislumbre de Pedro numa casa noturna LGBTQ é apenas contextual. Se pode fazer objeção ao casting que coloca uma atriz cisgênero para fazer uma transexual de grande importância à narrativa e, na via contrária, uma intérprete transexual para desempenhar um papel cisgêro minúsculo, ou seja, não atingindo minimamente uma equiparação. Apesar disso, se trata de um longa-metragem corajoso, que não se acovarda ao colocar o sexo e a nudez constantemente na telona, inclusive a de Marco Nanini, ator despido de sua vaidade, bem distante dos pais de família aos quais comumente é associado por conta de Lineu, papel que defendeu com brios entre 2001 e 2014 na série A Grande Família. Aqui ele surge chafurdando num poço de autocomiseração e tristeza, afogando fugazmente suas mágoas em corpos masculinos, enfim, sendo brilhante ao viver esse homem multifacetado e complexo que parece carregar um mundo de dores nas costas.

(Filme assistido durante a 29ª edição do Cine Ceará)

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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