Crítica

Originado a partir de um sentimento de desolação após as bombas lançadas em Hiroshima e Nagasaki durante a Segunda Guerra Mundial, esse clássico original do monstro Godzilla não dispensa o discurso ressentido de um povo assolado pelo terror nuclear. Ao mesmo tempo, é um filme que se mostra temática e tecnicamente maduro, mesmo para os dias atuais.

Uma criatura gigante despertada por testes nucleares passa a causar desastres catastróficos ao longo da costa do Japão. Investigado pelo biólogo Tanabe (Fuyuki Murakami), descobrem que se trata de uma criatura pré-histórica que esteve adormecida por milhões de anos e que é inclusive capaz de absorver radiação – e como infelizmente descobrem depois, também é capaz de expeli-la de volta.

A alegoria é clara: Godzilla é um escape para o cineasta Ishirô Honda retratar os horrores causados pelos ataques atômicos americanos e suas consequências radioativas. Há até mesmo um cientista, o Doutor Sherizawa (Akihiko Hirata), que desenvolve uma arma de destruição em massa propícia para ser usada contra o animal, mas que se recusa alegando que "jamais permitiria que seu experimento fosse parar nas mãos do estado", e deste modo, usado para fins bélicos. Um posicionamento moral que obviamente declara nas entrelinhas que, fossem os japoneses a terem descoberto a bomba nuclear primeiro, esta jamais teria sido usada contra o os Estados Unidos. Verdade ou mentira, é ao menos compreensível este desabafo repleto de mágoa que Honda imprime no subtexto de sua produção.

O diretor, portanto, busca não a saída fácil, que seria o divertimento e o espetáculo pirotécnico, mas, sim, extrair o drama de seu argumento. A trilha é pesada, opressiva e por fim, dramática. Afinal, a inevitável derrota de Godzilla não é uma vitória a ser comemorada, mas um lembrete de todas as vidas perdidas no processo. Corajosamente anticlimático, mas eficientemente tocante. Honda também demora-se para apresentar o monstro e cria suspense em torno de seu surgimento, uma abordagem que Steven Spielberg iria disseminar amplamente anos mais tarde com o seu Tubarão (1975).

Mas a expectativa compensa e a sequência do ataque do bicho a uma cidade grande é tensa e bem orquestrada. Note, por exemplo, como o cineasta filma os enquadramentos que trazem apenas o lagarto gigante em cena em um frame rate mais alto, diminuindo sensivelmente a velocidade de reprodução da imagem, não chegando a ser um slow motion, mas o bastante para que os movimentos da criatura soem naturais, uma vez que seu peso e tamanho o deixariam mais lento do que na realidade é o ser humano fantasiado que o interpreta. Uma lição de física que mesmo alguns dos profissionais de CGI atualmente não aprenderam ainda – basta reparar na animação dos Transformers de Michael Bay e compará-los com os descomunais robôs de Círculo de Fogo (2013).

Vendo hoje Godzilla (ou Gojira, título original japonês), é perfeitamente possível entender o fascínio que a obra gerou através dos anos, dando origem a inúmeras continuações e a uma tola refilmagem americana. Um longa-metragem que tinha tudo para cair na ação desenfreada, divertindo com seus efeitos práticos, tornando-se apenas mais um exemplar de cinema B. No entanto, ao invés de ser esquecível, preferiu levar-se a sério como raros filmes do gênero o fazem. Mesmo com uma mensagem datada, é um esforço cinematográfico e moral admirável.

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é formado em Produção Audiovisual pela PUCRS, é crítico e comentarista de cinema - e eventualmente escritor, no blog “Classe de Cinema” (classedecinema.blogspot.com.br). Fascinado por História e consumidor voraz de literatura (incluindo HQ’s!), jornalismo, filmes, seriados e arte em geral.
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