Crítica

Não fosse exibido em um festival voltado para documentários, seria muito fácil pensar que Comunhão se trata de um filme de ficção. A diretora polonesa estreante Anna Zamecka aponta sua câmera para a história de formação de uma jovem menina que toma conta de seu irmão autista, do seu pai alcóolatra e sonha em ter sua mãe de volta ao lar. A câmera da cineasta se mantém muito próxima da ação, com uma decupagem que remete à longas-metragens de ficção menos dramatizados, com pegada realista. Isso certamente pode confundir o público, mas não se engane. A história aqui mostrada é verdadeira e conta com uma protagonista tão forte quanto ingênua em seus planos de reconstruir sua família.

No documentário, conhecemos Ola, uma menina de 12 anos que tem responsabilidades de uma pessoa adulta no pequeno apartamento em que mora com o pai e o irmão. O patriarca é um homem com problemas com bebida e longe de ser uma figura de autoridade junto aos filhos. Nikodem, o irmão mais novo dela, é autista e está próximo de fazer sua primeira comunhão, uma tradição que segue com grande importância para o povo católico polonês. Enquanto o prepara para esse momento ímpar, a garota sonha em ver sua mãe de volta à casa. Ela mora afastada, com seu bebê e outro homem. A menina vê na comunhão uma oportunidade de reencontrá-la e, talvez, reestruturar a família. Mas, lógico, laços como esse, rompidos há tempos, são difíceis de reatar.

Anna Zamacka encontrou a história dessa família meio por acaso, enquanto fazia outro trabalho. Ela conheceu o patriarca primeiramente, que lhe contou de seus filhos. A cineasta, que teve um passado parecido com Ola, também tendo responsabilidades maiores do que sua então tenra idade, se identificou com o relato daquele homem e resolveu documentar aquele seio familiar. Conhecendo as crianças, percebeu que a história a ser contada era realmente de Ola, mas que a comunhão de Nikodem serviria como fio condutor perfeito para a trama. Assim nasceu o documentário, produzido pela HBO.

Contando a trajetória de Ola e sua família de forma muito sensível, a cineasta de primeira viagem é hábil em nos colocar junto daquelas pessoas tão humanas, falhas. Ola é um verdadeiro achado. Menina inteligente e forte, sua resolução em juntar seus entes queridos só é páreo para sua ingenuidade. Ela acredita piamente que, ao colocar a mãe de volta na casa, seria possível uma reestruturação. A presença da matriarca – em performance silenciosa, trocando apenas uma ou duas frases durante todo o filme – diz muito sobre a impossibilidade desse retorno naquele momento. Outro que merece destaque é Nikodem. Zamacka observou que todos a volta do menino não o tratavam de forma especial devido ao seu autismo. Ela, então, da mesma forma, mostra com muita naturalidade a vivência do garoto. Em uma cena interessantíssima, ele responde a uma batelada de perguntas religiosas para que possa receber a comunhão, respondendo-as acertadamente, provando ter estudado com afinco – para depois, em uma conversa com o padre, revelar sua própria versão do que acha dos pecados e das bênçãos da vida.

Comunhão é um documentário muito bem estruturado, que se preocupa em desenvolver seus personagens e nos envolver com suas jornadas. O filme fala sobre a solidão que pode ser observada mesmo em uma casa cheia, trata de abandono, de infância perdida. Mas não de forma pesada. Dinâmico, com apenas 72 minutos de duração, o longa de Anna Zamacka conquistou diversos elogios pelos festivais por onde passou e, agora, no É Tudo Verdade 2017, tem a chance de cativar as plateias daqui com uma narrativa familiar e sensível. Uma pequena gema, pronta para ser descoberta.

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é crítico de cinema, membro da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul. Jornalista, produz e apresenta o programa de cinema Moviola, transmitido pela Rádio Unisinos FM 103.3. É também editor do blog Paradoxo.
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