Crítica

Ciente da expectativa que inevitavelmente já recaia sobre o que levasse seu nome, Charles Chaplin começa Casamento ou Luxo com um letreiro, por meio do qual avisa o espectador de sua ausência em cena e do fato de, neste caso, se tratar de “um drama sério”. As tintas trágicas ficam evidentes já no desencontro responsável por afastar os jovens que planejavam fugir da pequena cidade francesa para casar-se na capital. O pai de Marie St. Clair (Edna Purviance) chega a trancá-la no quarto para evitar a despedida, enquanto o de Jean (Carl Miller) demonstra austeridade semelhante diante da possibilidade da partida do filho. Ainda que o casal esteja disposto a tudo para permanecer junto, uma ocorrência fatídica muda o panorama, causando um mal-entendido que acaba determinando a separação deles. Um ano depois, o cenário é completamente distinto. Marie mora em Paris e está às voltas com Pierre (Adolphe Menjou), um bon-vivant dado à vida noturna, de enlace marcado com outra mulher.

Casamento ou Luxo é uma tentativa de Chaplin de afastar-se de sua produção essencialmente cômica, talvez pela sensação (reducionista) de que os grandes temas inapelavelmente residam na seara dramática, algo deflagrado pela adjetivação inicial. Menos brilhante que suas obras mais famosas, todavia este exemplar está muito longe da banalidade, exatamente pela maneira como tenta desvencilhar-se das convenções do gênero ao qual está filiado, a fim de tratar com contornos multifacetados os sentimentos e as complexidades em voga. Uma casualidade faz com que Marie e Jean se reencontrem na Cidade Luz. Chaplin investe numa reaproximação difícil, em que, segundo diz o próprio texto, as formalidades encobrem as reais intenções. O rapaz tornou-se um pintor, morando humildemente com a mãe, enquanto a garota aproveita os luxos decorrentes de sua relação com o ricaço que, a bem da verdade, está interessado nela apenas como amante, deixando clara sua não intenção de algo sério.

Embora Pierre, por exemplo, seja delineado como um homem praticamente sem escrúpulos, cuja riqueza lhe permite brincar com os sentimentos alheios sem mais aquela, os demais personagens de Casamento ou Luxo, especialmente os protagonistas, são dotados de camadas e arestas. Senão vejamos. Marie vive um dilema entre seguir seu coração, casando-se finalmente com quem antes dividia sonhos de uma vida a dois, e resignar-se à posição de amante, contudo, gozando dos benefícios que o dinheiro alheio proporciona. Essa dúvida poderia jogar nela o peso da vilania, já que Jean, mesmo depois de constatar as transformações da situação, decide retomar sua paixão exatamente do ponto em que ela foi bruscamente interrompida por uma ironia do destino. Mas, Chaplin habilmente evita essa dicotomia, mostrando o vacilo do protagonista masculino diante das ferrenhas objeções da mãe ao casamento, um instante de humana covardia que lhe custa mais que o amor de Marie.

As ambivalências que trespassam Casamento ou Luxo constantemente são um sintoma da sensibilidade de Charles Chaplin como artista. A despeito de determinados momentos em que ele pesa a mão, flertando de maneira perigosa com um dramalhão mais rasgado, o que se percebe é uma proximidade do roteirista/diretor com suas criaturas fadadas a sofrer diante das circunstâncias e dos imprevistos. Na medida em que a trama avança, sentimos o amargor de uma possível resolução não totalmente satisfatória para todas as pessoas envolvidas nesta ciranda sentimental. A impossibilidade de conviver com a frustração oriunda da perda, pela segunda vez, da mulher amada, faz Jean tomar uma atitude radical, direcionando o filme para a tragédia que desemboca num encerramento um tanto desajeitado, que chega a açucarar um pouco o presente e o porvir dos remanescentes. Porém, não obstante esse fechamento de ressonância ligeiramente questionável, temos aqui um longa-metragem de respeito.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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