Crítica

Longe dos holofotes, dos contratos publicitários e da promoção da mídia, mas, ainda assim, perto geograficamente do Maracanã, um dos grandes templos do futebol, acontece a final do campeonato de favelas da Zona Norte do Rio de Janeiro. Juventude, da comunidade Sampaio, e Geração, da Matriz, brigam pelo título, lance a lance, sob os olhares atentos das torcidas que transmitem energia aos jogadores por meio de gritos de incentivo, ao passo que afrontam o adversário com cânticos de guerra, palavrões e ofensas. Coisa do jogo. O diretor Eryk Rocha procura fazer uma leitura poética do esporte mais famoso do mundo, para isso justamente se valendo de sua disputa num estado mais puro, amador no sentido da prática por quem verdadeiramente o ama. Mais que glorificar o futebol, Campo de Jogo evidencia as emoções envolvidas na partida, o suor, o sorriso e a lágrima.

Diferente de outros filmes que utilizam a estrutura do futebol como pano de fundo de redenções, fracassos e tudo mais que o esporte bretão pode ajudar a simbolizar no que diz respeito aos reveses e êxitos da vida, Campo de Jogo busca extrair de cada movimento, de cada respiração, de cada hesitação e instante de euforia uma beleza que talvez ajude a explicar o fascínio exercido pela disputa dentro das quatro linhas. Embora haja um fiapo de narrativa linear, com a tensão aumentando na medida em que nenhum time marca gol, somos convidados a explorar a simplicidade, o gesto, a fim de alcançar uma dimensão lírica. A imagem é soberana. Vemos os técnicos trabalhando a motivação dos atletas, ressaltando, com palavras de ordem, a importância da vitória. No semblante dos jogadores, um misto de vontade e dúvida, de ânsia pelo sucesso e medo da possível derrota.

Outro aspecto importante em Campo de Jogo é o som, elemento nem sempre diretamente associado ao que vemos na tela, mas, de qualquer maneira, responsável por adicionar camadas extra de sentido às imagens. É um componente ativo da significação dos acontecimentos. O único senão são as árias de óperas de Puccini, Wagner e Villa-Lobos, utilizadas para dar grandeza à narrativa, mas que soam como um sublinhar desnecessário e falso em meio à construção coesa edificada por Eryk Rocha até então. Não é preciso que algum personagem, ou mesmo um narrador, verbalize a discrepância entre o futebol jogado naquela final protagonizada pelos moradores de comunidades e o que estamos acostumados a acompanhar semanalmente na televisão. Essa relação fica implícita, configurando-se num dos dados que conferem ainda mais pungência ao filme.

Em Campo de Jogo, é como se voltássemos ao estado primal do futebol, dissociando dele toda a teia de expedientes escusos que maculam sua aura romântica. Embora os jogadores, os técnicos e mesmo a torcida mimetizem o que acontece entre os profissionais, evocando suas táticas e discursos, eles carregam essa pureza há muito perdida no terreno das grandes cifras. O gol, instante mais aguardado da peleia, é quase escanteado completamente por Eryk Rocha que, assim, dá relevo ao processo e não propriamente ao resultado. Pouco importa quem são os vencedores e os perdedores. Protagonista é a imagem que investiga a paixão humana em jogo, colada nos jogadores como quem observa de perto alguém totalmente entregue ao seu objeto de desejo. Abstraindo certos lugares-comuns do futebol, o diretor cria algo nem sempre dinâmico, mas bastante interessante.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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