Crítica

Maria Augusta Ramos é uma das cineastas mais respeitadas e internacionais do cenário cinematográfico brasileiro. No entanto, não é uma profissional muito popular, ou mesmo (re)conhecida pelo grande público. Isso se deve a dois fatores. Primeiro, por ela, apesar de ser brasiliense, há anos estar radicada em Amsterdã, onde estudou Cinema na Academia Holandesa de Cinema e TV. E depois por sua obra ser composta por um viés documental muito forte e relevante. Sua câmera é austera, não busca o escracho ou a denúncia, mas, sim, a fina ironia das contradições que estão impregnadas na sociedade brasileira. E este mesmo olhar se percebe em Morro dos Prazeres, seu mais recente trabalho, selecionado para a mostra competitiva do 46° Festival de Brasília.

Capítulo final de uma trilogia iniciada com Justiça (2004) e seguida por Juízo (2007), Morro dos Prazeres investiga o que acontece na comunidade de mesmo nome, no Rio de Janeiro, quando uma UPP – Unidade de Polícia Pacificadora – passa a agir na região. Se o primeiro filme era sobre os bastidores do judiciário nacional e o segundo se detinha naqueles que acabam envolvidos de uma forma ou de outra pela avaliação de outros, dessa vez o conflito entre poder e população se dá fora de ambientes fechados e diante de autoridades máximas. Estamos nas ruas, e essa virada de cenário, se não é plenamente positiva, ao menos oferece um dinamismo até então inédito dentro do perfil da realizadora. A questão é de ajustes, e não de contornos.

Filmado durante quatro meses, entre abril e julho de 2012, quando se completava exatamente um ano de atividades da UPP no Morro dos Prazeres e na comunidade do Sobradinho, Maria Augusta Ramos desenvolve, sem pressa – mas também sem perder tempo, pois cada cena exibida revela, ainda que com parcimônia, seu propósito – uma crônica documental sobre o dia a dia dos moradores da região e também dos policiais deslocados para a localidade. O processo de pacificação de um ambiente até então dominado pelo medo e pela violência é algo curioso de ser apreciado. No entanto, é imperativo avaliar os prós e contras que tal iniciativa provoca, principalmente por ser oriunda daquela que, muitas vezes, é a fonte do conflito: a Polícia. Quem mora na favela, muitas vezes, receia com mais intensidade o contato com o oficial fardado do que com o bandido que se esgueira pelas vielas. Se um chega com a brutalidade, preocupando-se com o aqui e com o agora, o outro está ali inserido, como um câncer que retira, mas também dá em troca. E a mudança dessa percepção não é algo que possa ser conquistado da noite para o dia.

São os próprios protagonistas destas modificações que conduzem o discurso de Morro dos Prazeres. A cineasta é sábia em não interferir, mantendo-se o mais neutra possível. Assim, podemos escutar e acompanhar as atividades tanto do policial que é chamado para solucionar o roubo de um par de tênis até do promotor de eventos que deseja que sua festa dure por toda a madrugada, passando pelo agente social que também é carteiro e pelo jovem cansado de tantas promessas e poucos resultados. O fim do tráfico de drogas pode ser o objetivo inicial, mas as consequências deste tipo de ação são muito maiores. É por isso que o estabelecimento de um diálogo entre todas as partes se faz necessário. O que Maria Augusta Ramos oferece com seu filme, portanto, é um olhar íntimo deste processo, colocando o espectador numa posição privilegiada. As conclusões, no entanto, competem a cada um. Como boa observadora, ela ensina como pescar, sem nunca entregar o peixe de mão beijada.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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