Crítica

Não é necessário ser um conhecedor da arquitetura para ouvir o nome de Oscar Niemeyer e associá-lo rapidamente ao seu ofício. Nome dos mais importantes da história do Brasil, Niemeyer era conhecido por suas obras arrojadas, passando longe do convencional. Pois outro arquiteto, contemporâneo do popular Niemeyer, também tinha talento para o inusitado, uma visão da profissão que ia muito além das linhas retas e das vigas comuns. Este homem era Sérgio Bernardes, profissional que se especializou em casas que, ao mesmo tempo, conseguiam ser extravagantes e funcionais. Foi responsável por obras suntuosas como o Pavilhão de São Cristóvão, no Rio de Janeiro, o Hotel Tropical Tambaú, em João Pessoa, e o mastro da bandeira na Praça dos Três Poderes, em Brasília. Ao saber disso, a pergunta fica: por que ele não é tão popular e facilmente reconhecido como um grande arquiteto quanto seu colega de profissão? Este questionamento é um dos fios condutores do ótimo documentário Bernardes, dirigido por Gustavo Gama Rodrigues e Paulo de Barros.

O neto de Sérgio, o também arquiteto Thiago Bernardes, serve como cicerone da trama. Busca depoimentos de amigos e familiares, vai aos locais onde se encontram obras assinadas pelo avô e, neste processo, procura entender o que levou o esquecimento do nome de Sérgio nos círculos universitários e no conhecimento comum da população. Imagens de época são costuradas aos depoimentos e podemos conhecer a figura de Sérgio Bernardes, principalmente através das lembranças de seus familiares.

Diferente de muitos documentários que colocam seu retratado em um pedestal, Bernardes não se furta em mostrar um lado menos luminoso do protagonista. Histórias de adultério e como o arquiteto abandonou sua esposa ao completarem 25 anos de casados (por carta) são exemplos de uma faceta pouco simpática daquele homem. Claro que muitos membros da família relembram Sérgio como uma referência, uma pessoa inteligentíssima (e que muitas vezes não conseguia se fazer entender exatamente pelo linguajar rebuscado), um sujeito à frente do seu tempo, um pai (tio, avô, irmão) boníssimo.

Na primeira metade do documentário, a dupla de diretores se concentra em nos mostrar os trabalhos de Sérgio Bernardes, todos de apuro técnico e beleza ímpar. A casa de Lota de Macedo Soares (que aparece no filme Flores Raras, 2013, de Bruno Barreto) e a residência do cirurgião plástico Ivo Pitanguy são algumas das idéias arrojadas de Bernardes quando falamos de projetos particulares. Mas, sem dúvidas, uma das obras mais impactantes de Bernardes foi o Pavilhão de São Cristóvão, no Rio, uma estrutura que não utilizava vigas ou pilares para estruturar seu teto. O documentário traz imagens do início dos anos 1960, quando o local foi inaugurado, para ilustrar o arrojo do projeto. Infelizmente, o pavilhão perdeu sua cobertura na década de 1980 e, junto, boa parte de seu charme.

Depois de destacar o talento de Sérgio Bernardes para a arquitetura e fazer o espectador se apaixonar pelos desenhos inovadores daquele profissional, vem o plot twist do filme. Thiago Bernardes pergunta aos entrevistados o porquê do seu avô ter sido esquecido pelas universidades, por ser um nome quase maldito nesta profissão. E a resposta é o envolvimento de Sérgio com os militares da Ditadura. Alguns depoentes desculpam Bernardes, apontando ingenuidade do arquiteto. Mas a verdade é que ele acabou projetando o mastro da bandeira em uma praça que, até então, era uma criação de Oscar Niemeyer. Outros projetos encomendados pela Ditadura foram realizados – alguns saíram do papel, outros não. Com ou sem consciência do que sua relação junto aos militares poderia fazer, Bernardes acabou manchando seu nome.

O documentário de Gustavo Gama Rodrigues e Paulo de Barros acaba sendo um registro interessantíssimo de uma figura controversa, que perdeu espaço na memória do país após decisões de carreira questionáveis. Por conseguir mostrar uma riquíssima gama de depoimentos e apresentar a uma nova geração um profissional do gabarito de Sérgio, Bernardes é altamente recomendável. O trabalho da dupla de diretores consegue aliar seriedade em diversos momentos, mas não esquece de incluir passagens bem humoradas, lembrando do temperamento animado e bonachão do retratado – comentado por vários dos familiares. A impagável história que fecha o documentário rende boas risadas e mostra bem os vários lados de Sérgio Bernardes.

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é crítico de cinema, membro da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul. Jornalista, produz e apresenta o programa de cinema Moviola, transmitido pela Rádio Unisinos FM 103.3. É também editor do blog Paradoxo.
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