Crítica

São muitos os dramas que compõem Atrás da Porta. São dramas, no entanto, de sua própria concepção. O novo filme de Istvan Szabo é marcado por essa dificuldade em articular suas ideias, seus personagens, suas formas e sua estética, o que é assustador quando estamos falando de um cineasta com algum tempo no certame. A sucção de todo um caudaloso clima pós-guerra desenha as estruturas de uma história que jamais escapa à lógica produtiva de mercado, isto é, à institucionalização de corpos e mecanismos facilmente identificáveis. Não é somente o céu digitalizado e o espiritismo de argila (num dos finais mais bregas da história do cinema) que assumem sua fragilidade e que tornam o filme um rabisco estético de mau gosto, mas certa credulidade e presunção que, diferentemente dos filmes pretensiosos (estes sim), não assume a impossibilidade narrativa intrínseca ao meandro do jogo de relações que tenta configurar.

A desmistificação das banalidades cotidianas de uma senhora não muito simpática (típicos personagens que na verdade são pessoas de bom coração, mas que sofreram sequelas no passado que ainda estão cicatrizando) é tudo que há para chorar. As lágrimas da despedida, seja da morte (pois ela virá; sempre vem) ou da vida mesma, são propagandas de um drama que insiste em desafogar toda a qualidade de representação que o espaço e o tempo lhe emprestam em um serviço mercadológico para amansar consciências. Nada que já não tenha sido feito mesmo no cinema americano mais popular, como em Conduzindo Miss Daisy (1989), por exemplo.

O filme, eis onde ele começa a agonizar, pretende versar sobre linhas resvalantes. Gira em torno de uma bruxa má, comuna, quer só viver e morrer. Quer, na verdade, morrer sabendo que morreu. Não precisa da igreja, tampouco sente necessidade de Deus, pois diz que conheceu muito bem o que Ele fez durante a guerra. Isso na Hungria, na metade do século passado, quando a escritora Magda (Martina Gedeck) chama Emerenc (Helen Mirren) para a realização de trabalhos domésticos básicos. De início surpreende que Emerenc não aceite que lhe deem ordens – o que, artificialmente, não só simboliza os problemas da governanta quanto sua ligação com a guerra e com o comunismo.

Aos poucos, porém, elas se aproximam, cada qual a sua forma, uma da outra. Uma relação de muitas vontades e desejos potentes se anuncia, mas logo é eminentemente derrotada pela força de efeitos dramáticos impositivos que atordoam a relevância dos planos tal qual um comercial de margarina. O apogeu da imagem – na cena do hospital em que há uma troca de confidências entre mentiras e verdades sussurradas – é sucedido por sua completa aniquilação: o corte plenamente anticlímax desvirtua, com toda sua precocidade, a natureza mesma do drama que o filme pretende erigir e impregnar na tela.

Ora, não há tempo de realizar qualquer aproximação com a personagem, pois sua história é murcha, despolitizada e resulta enfraquecida diante da “estética”. Os planos não duram nada além da imagem do telejornal. Narração de reportagem. Estranhamente para um filme dramatizado (no sentido de que se pretende sóbrio), com os flashbacks, que mediam o acesso à memória, não há um retorno àquelas imagens, àquele passado sangrento, mais sim a um emboloramento de cenas incapazes de potencializar um conflito. O fade preenche as sequências de tal forma que retira a própria mobilidade pretendida pela montagem. Ritmo, fruição e durabilidade entram em curto-circuito. Aliás, é tudo apressado em Atrás da Porta: o fade realiza a transição quando não existe passagem alguma de tempo em uns momentos, e quando há, a elipse é mostrada através de legendas. São escolhas fracamente anacrônicas e que destituem do filme qualquer coisa que ele poderia explanar através de suas imagens, pois junto disso vem carregado um peso inconsequente nas costas na trilha sonora que, desfiguradamente, não substancia a doença tão particular do filme (o horror da guerra e da destruição dos sonhos), lhe deixando agonizar entre momentos constrangedores de banalização do passado histórico-político húngaro e de uma narrativa de cores e sabores bastante maltratados.

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é crítico de cinema, membro da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do RS. Edita o blog Tudo é Crítica (www.tudoecritica.com.br) e a Revista Aurora (www.grupodecinema.com).
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