Crítica

A implacabilidade do tempo é uma constante em Atentamente, documentário colombiano que transcorre numa residência de idosos. Repetidas vezes, vemos funcionários removendo protocolarmente pertences de moradores recém-falecidos, procedimento testemunhado dolorosamente por quem ficou. A jovem cineasta Camila Rodríguez Triana insiste nisso para termos a exata noção de que a morte espreita aquele lugar, impondo os pontos finais. O protagonista aqui é Libardo, senhor de hábitos simples, apaixonado por Alba, mulher calada, mas que se desinibe ao posar para as lentes fotográficas do namorado. Sem privacidade por conta da configuração do recinto, da ausência de divisórias e da contiguidade das camas, eles decidem juntar dinheiro para passar uma noite fora, num quarto de hotel. Essa vontade não chega a configurar-se basicamente em plot, sendo mais um McGuffin, no que tange à linguagem.

A intenção do casal, de conseguir tempo a sós, é apenas um dos dados que compõe o enredo de Atentamente. O mais importante nele é exatamente o que se desprende da observação íntima do cotidiano dessa localidade de funcionamento distinto. Vemos Libardo fabricando artesanalmente vassouras. Ao lado, Alba picotando jornais. As paredes carcomidas testemunham o escoamento vagaroso do tempo tão bem capturado pela câmera de Camila. Obviamente encenadas, algumas passagens ajudam a reafirmar o que talvez uma busca estrita por espontaneidade não conseguiria alcançar. Afinal de contas, embora o foco seja mais detido no repetitivo ir e vir de Libardo, há uma vontade explícita de comentar as agruras da velhice, a angústia muitas vezes silenciosa da proximidade da finitude. Na medida em que as pessoas se vão, a despeito de não sabermos mais que nomes em placas, cresce a consciência dessa fragilidade.

De Alba conhecemos pouco. Ela se movimenta lentamente nos ambientes, esboçando sorrisos apenas quando instada pelo amado que pretende eternizar sua imagem em película. Já a história de Libardo ganha bem mais destaque. As visitas de sua filha trazem à tona velhos fantasmas, reabrem feridas que visivelmente fazem esse sujeito, residente há quase vinte anos naquele local, revisitar o sofrimento de outrora. Claudia captura esses momentos com sensibilidade, deixando que as pessoas se revelem. Numa dessas conversas claramente truncadas pela falta de convivência, Libardo comenta como a modernidade, a mudança inexorável da ordem das coisas, arruinou sua vida. Logo adiante, é repreendido pela filha por querer dinheiro para levar Alba a um hotel. Já a derradeira interação entre eles é a mais lancinante do filme. Sentir-se novamente abandonado faz o homem ruir, mesmo resignado.

Atentamente incorpora o ritmo cadenciado da residência dos idosos. Tudo praticamente vira rotina nesse espaço que, no passado, foi a salvação de Libardo. São tocantes os frequentes flagrantes de afeto entre ele e Alba. Nos pequenos gestos surgem evidências do carinho, algo que, de certa maneira, ajuda a aliviar os pesos intrínsecos à velhice. É uma opção curiosa, e extremamente eficiente, começar o documentário apresentando um fato que torna o percurso ainda mais pesaroso e termina-lo com um triunfo singelo sobre os diversos obstáculos, ou seja, invertendo a ordem cronológica dos acontecimentos, partindo, assim, da tristeza à alegria. É como se Camila Rodríguez Triana quisesse impor à morte uma espécie de derrota simbólica, ou até reafirmar a importância dos episódios felizes para mitigar os reveses que a vida repetidas vezes nos impinge. Em suma, um longa-metragem melancólico e bonito.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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