Crítica

A família Garrel é uma das mais ativas do atual cinema francês. Se o filho Louis Garrel ganhou projeção internacional com sua participação no emblemático Os Sonhadores (2003), este foi seu único trabalho em inglês, e desde então tem se refugiado em produções feitas no país natal ao lado de realizadores como Christophe Honoré e Bertrand Bonello. Destes seus parceiros habituais, se destaca também o pai – Philippe Garrel, marcando presença nos últimos cinco longas do realizador – e da então namorada – Valeria Bruni-Tedeschi, que o dirigiu em Um Castelo na Itália (2013). Pois bem, faltava a mãe. Mas esta carência é remediada em Astrágalo, dirigido e estrelado por Brigitte Sy e de cujo elenco participa também sua irmã, Esther Garrel. No entanto, a reunião familiar se dá apenas em parte – quem for esperando uma grande atuação de Louis irá se decepcionar, pois ele faz apenas uma participação bastante rápida. E assim como ele logo é esquecido em cena, também esse deve ser o destino desse filme, título que ambiciona muito, porém entrega pouco.

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Anunciado como “uma homenagem ao cinema da nouvelle vague”, Astrágalo é uma adaptação do livro autobiográfico de Albertine Sarrazin. Além da bela – porém soturna – fotografia em preto e branco e seus personagens irrequietos e irresponsáveis, há pouco em cena do movimento que revolucionou a cinematografia francesa. Publicado em 1965, L’Astragale se tornou uma referência mítica da literatura francesa pela forma aberta e objetiva com a qual narra as desventuras da protagonista, uma mulher que divide sua cama entre homens e outras mulheres, que foi presa ao participar de um assalto frustrado e que não tinha o menor interesse em levar uma vida ordeira e tradicional. Adepta ao estilo de ser pregado por James Dean, a artista e revolucionária morreu cedo, aos 29 anos, vítima de um erro médico. Um problema que a acompanhou desde, veja só, a quebra do astrágalo.

Para quem desconhece, astrágalo é um osso situado no pé – mais para o calcanhar – humano. Também conhecido como tálus, serve para articular os ossos da perna, formando o tornozelo. Albertine (Leïla Bekhti, de A Fonte das Mulheres, 2011), no entanto, o quebra ao pular um muro durante sua fuga da prisão, o que a deixou manca pelo resto da vida. Se a gramática nos indica que tal definição aponta também para alguém errante, sem eira ou destino, podemos entender ainda como um bom diagnóstico para a protagonista. Salva após sua queda por outro contraventor, fez de Julien (Reda Kateb, de Hipócrates, 2014) o amor de sua vida, a quem permaneceu ligada até o fim, independente do modo como ele a tratava e das ligações que mantinha com outras mulheres. Pois bem, dramas a respeito de amores loucos e insensatos é uma vertente que volta e meia é explorada pelo cinema mais autoral. Sy não foge à regra, centrando na relação dos dois a trajetória de vida de Sarrazin e indicando como origem da perdição da própria.

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É curioso que Astrágalo é um filme que parece fazer melhor sentido para os conhecedores da obra literária, que talvez identifiquem na tela elementos que depois seriam melhor explorados nas páginas do livro. Como o volume é inédito no Brasil, tal processo se mostra dificultado por aqui. Brigitte Sy não revela interesse em se debruçar sobre as inquietações da autora, reduzindo-a a um mero reflexo da relação conturbada que tinha com Julien e também com Marie (Esther Garrel), aquela que a levou primeiro ao crime e depois ao sexo. Dessa forma, perde-se muito da força que talvez uma obra como essa poderia almejar. Assim como o marido e também muito da persona cinematográfica criada pelo filho, Sy demonstra uma atitude blasé em relação a sua biografada, reconhecendo sua importância, porém sem paciência para discorrer sobre ela de forma mais detalhada. Como resultado, tem-se um longa dono de muito estilo, porém carente de conteúdo.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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