Crítica

Chiquita Bacana, lá da Martinica, se veste com uma casca de banana nanica”. Assim começa a clássica marchinha composta por Braguinha em 1949 e que até hoje ressoa no imaginário popular. Mas quem seria, de fato, a tal ‘Chiquita Bacana’? Sem ter sido personalizada, como no caso da “Garota de Ipanema”, restaram apenas as especulações. E o que sabemos sobre ela? Se acha a bacana, vem de longe, usa um mínimo de roupa e adora banana. Talvez os menos antenados não percebam de imediato, mas essa parece ser a descrição de qualquer homem gay em tempos de grandes festas – como o Carnaval, por exemplo. Gays viajam quilômetros por uma boa balada, chegam bancando pose, quase sempre desnudos e... bom, a parte da banana fala por si própria. Nada mais justo, portanto, que a canção popular sirva também de inspiração para um dos maiores eventos do calendário LGBT nacional. É em busca desse registro que o documentário As Filhas da Chiquita vai atrás. E o melhor é que essa procura apresenta interessantes resultados.

Realizado de forma totalmente independente entre 2002 e 2005, As Filhas de Chiquita apresenta de forma objetiva – são apenas 50 minutos de projeção – um acontecimento tão insólito quanto naturalmente brasileiro. Em Belém, capital do Pará, durante a segunda semana de outubro, acontece o Círio de Nazaré, uma bicentenária procissão católica reconhecida como a maior do Brasil e uma das mais expressivas de todo o mundo. Esse trajeto, que geralmente é realizado no segundo domingo do mês, passa por uma das principais praças da cidade – lugar que, no mesmo dia e horário, vira palco da Festa da Chiquita, um conglomerado gay em espaço público que desperta, a cada ano com mais força, a atenção dos moradores e turistas de toda a cidade e além. O foco deste filme é mostrar como é possível 2 milhões de religiosos fervorosos conviverem lado a lado com 400 mil homossexuais, todos em busca de algum tipo específico de purificação e alívio. Essa mistura gerou uma forte polêmica quando o IPHAN incluiu, em 2004,  a Festa da Chiquita no processo de tombamento do Círio como patrimônio imaterial da humanidade. Afinal, ambos são eventos distintos ou partes de um todo muito maior?

A estrutura de As Filhas da Chiquita é bastante convencional, e o charme do projeto está justamente nas vozes que temos oportunidade de conferir. Se por um lado temos o pároco e a senhora carola que acreditam piamente na separação destas partes, afirmando absurdos como “um gay é pior do que um bandido, pois este erra uma vez e se arrepende, enquanto que o homossexual erra e segue errando, sem arrependimento, e por isso não é digno de perdão”, conhecemos também o senhor heterossexual que prega o amor acima de tudo, feliz com sua namorada de 70 anos e seguindo a linha “viva e deixe viver”. Há ainda as travestis, os gays, os ativistas, os que se montam, se produzem e atuam nos bastidores para que a Festa da Chiquita, mesmo com tanta controvérsia, siga acontecendo e crescendo, ano após ano, conquistando apoiadores e admiradores. Os três lados se fazem presente: os contra, os a favor e os que não se importam. A se lamentar apenas o pouco aprofundamento nessa discussão. O formato reduzido de tempo, provavelmente, seja o culpado por essa edição mais “enxuta”.

Selecionado para diversos festivais por todo o país e no exterior desde a sua estreia, que aconteceu no Festival do Rio de 2006, As Filhas da Chiquita ganhou uma menção honrosa do júri internacional como Melhor Filme Brasileiro no Mix Brasil, além de ter sido escolhido também como Melhor Filme pelo público na Mostra Amazônica do Filme Etnográfico.  Estes reconhecimentos pontuam com eficiência o trabalho da diretora Priscilla Brasil, que carrega no nome seu maior mérito: revelar facetas desse país que muitas vezes ficam restritas a apenas alguns grupos limitados. Curioso e pertinente, é uma obra que poderia ser mais desenvolvida, mas que ainda assim mostra sua força, mesmo que num discurso econômico e limitado.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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