Crítica

Artista audiovisual multifacetado, com trabalhos de videoarte, programas televisivos, documentários e instalações em museus, o francês Philippe Grandrieux chega ao seu quarto longa ficcional, Apesar da Noite, demonstrando um caloroso apreço pelas possibilidades experimentais e provocativas do cinema. A trama – escrita por Grandrieux em parceria com outros três roteiristas, incluindo a cineasta Rebecca Zlotowski – acompanha Lenz (o músico Kristian Marr), que deixa a Inglaterra e retorna a Paris à procura de sua antiga paixão, Madeleine, misteriosamente desaparecida. Em seu regresso, ele reencontra os amigos Lola (Lola Norda) e Louis (Paul Hamy), e acaba se envolvendo com duas mulheres: a cantora Lena (Roxane Mesquida) e a enfermeira Hélène (Ariane Labed). Porém, mesmo lidando com estes novos relacionamentos, Lenz segue investigando o paradeiro de Madeleine, chegando a uma pista que o faz adentrar o submundo da indústria pornográfica extrema.

Apresentando a descida ao inferno em busca do amor perdido, ou ao menos da lembrança deste, de Lenz – que literalmente surge do vazio no plano de abertura – Grandrieux escancara seu experimentalismo formal e narrativo, trabalhando com a amplificação dos sentimentos e atitudes dos personagens. O amor e, especialmente, a desilusão amorosa, modificam a percepção daquele apaixonado/desiludido, potencializando tanto o deleite quanto o sofrimento, e o cineasta abusa desta noção, elevando-a ao limite. Dentro deste exagero premeditado, as figuras que povoam a tela amam, discutem e se martirizam com máxima intensidade, revelando a impulsividade de quem vive o momento atual como um instante derradeiro, sem volta. Grandrieux deixa clara sua não preocupação com o realismo ou com a racionalidade dos personagens, que exercem a função de representações passionais de seu radicalismo.

Essa hiperdramatização por vezes remete à obra de cineastas como o polonês Andrzej Zulawski – há uma sequência de Labed caminhando pelas ruas de Paris que evoca as imagens de Isabelle Adjani em Possessão (1981) – no entanto, ainda que lide com a distorção da realidade e trafegue pela esfera onírica, entre sonhos e pesadelos, Grandrieux não adere ao fantástico tão abertamente quanto o Zulawski de Possessão. Mesmo se afastando do realismo, o cineasta francês mantém um registro de proximidade quase tátil dos personagens, através de closes e movimentos inquietos e vertiginosos de câmera que exploram rostos e corpos de modo bastante íntimo. Essas características se unem ao despudor com o qual Grandrieux filma o sexo e a violência que, além das cicatrizes psicológicas, deixam sempre marcas físicas, fazendo com que todos os sentimentos abandonem o âmbito abstrato e se materializem concretamente.

Com essa abordagem, o cineasta exige um enorme comprometimento dos atores, especialmente das intérpretes femininas. Roxane Mesquida injeta uma camada de delicadeza à Lena, realçada nas duas belíssimas sequências musicais, atmosféricas e hipnóticas, nas quais interpreta as canções “Fever” e “The Night”, de autoria de Ferdinand Grandrieux – compositor e filho do diretor. Aos poucos, porém, a personagem acaba carregada pela angústia de Lenz e pelo ciúme, passando a dividir uma obsessão similar a dele por Madeleine. Mas é mesmo Ariane Labed quem exibe a entrega mais visceral, dando vida à dualidade intrínseca de Hélène, que Grandrieux reforça ao detalhar o cuidado da enfermeira com o corpo de um paciente ao dar-lhe banho, contrastando com a autoflagelação que impõe ao próprio corpo. Na dor do sadomasoquismo perpetuado durante o sexo, encontra-se tanto o prazer, o desejo, quanto a punição por um sentimento de culpa, relacionado à morte do filho.

Labed externa todas essas contradições com perfeita desenvoltura, encontrando respiros na relação mais afetuosa de Hélène e Lenz, para depois mergulhar numa jornada terminal autodestrutiva pela pornografia underground, que começa numa sequência ritualística primitiva em um bosque durante a madrugada, chegando ao mundo abjeto dos snuff films. Kristian Marr, por sua vez, se vale de sua aparência peculiar e se insere adequadamente na narrativa tortuosa – em suas mais de duas horas e meia – e elíptica de Grandrieux, que joga constantemente com a noção de concreto e imaginário, e do tempo – passado e presente. Todos os elementos trabalhados pelo cineasta geram uma desorientação que acompanha a existência dos personagens, com seu verdadeiro amálgama de nomes similares - Lenz, Lola, Louis, Lena, Madeleine, Hélène – como se estes simbolizassem variações do mesmo ser.

Contudo, Grandrieux nunca se aprofunda na construção da personalidade e das motivações dessas figuras, apostando exclusivamente nos efeitos da palpável degeneração física destes para que suas intenções sejam compreendidas. Há, indubitavelmente, uma força atrativa nas pretensões estéticas e alegóricas da experiência sensorial proposta por Apesar da Noite, que oferece uma atmosfera opressora e claustrofóbica capaz de gerar desconforto e tensão. Isso não só nas cenas mais gráficas de teor violento e sexual, mas também nas de elaboração climática mais latente – como o ameaçador diálogo final entre Lena e seu pai, deflagrando uma suposta relação incestuosa. Mesmo com tais virtudes, paira sobre a obra um incessante questionamento da validade extraída da aparente gratuidade do choque, da exploração excessiva da miséria do ser humano e seu instinto depreciativo, para o qual a única redenção parece estar nos laços maternais. Uma visão de mundo pessimista e trágica, porém parcialmente esvaziada, que expõe o niilismo agudo de seu realizador, cujos objetivos permanecem quase tão enigmáticos e obscuros quanto o universo por ele apresentado.

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é formado em Publicidade e Propaganda pelo Mackenzie – SP. Escreve sobre cinema no blog Olhares em Película (olharesempelicula.wordpress.com) e para o site Cult Cultura (cultcultura.com.br).
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