Crítica

Fala-se de amor quase que a todo instante em Anna Karenina, mas é curioso perceber o quão equivocado o termo é empregado: o que se sucede com a personagem-título nada mais é do que uma paixão fulgurante, daquelas que surge levando tudo consigo, mas que por outro lado não consegue se sustentar por muito tempo. E das tantas estrelas que já defenderam essa trágica heroína, talvez Vivien Leigh seja a que melhor tenha a compreendido: o grande problema de Anna não era seu marido, o amante ou a sociedade ao seu redor, e sim sua instabilidade emocional e os próprios demônios que carregava consigo.

Esta versão do clássico de Leo Tolstoy levada às telas em 1948 se difere das anteriores por se apoiar quase que inteiramente na protagonista. O filme não começa com ela, mas sim com o drama vivido pelo irmão, Stefan, que enfrenta uma crise conjugal por ter traído a esposa. Anna (Leigh) está indo ao encontro dele em Moscou, deixando sua distante São Petersburgo para trás, para ajudar o casal. Basta uma conversa com o cunhada, no entanto, para que tudo se ajeite e o espectador entenda o que de fato ela foi fazer na capital russa: se divertir. Casada com um importante funcionário do ministério, um homem rígido e cheio de compromissos, Anna Karenina leva uma vida solitária e monótona, e esta é sua oportunidade de ver e, principalmente, ser vista.

O grande acontecimento da temporada é o baile, e ela, obviamente, não poderia faltar. Mesmo sendo a noite de Kitty, a mais moça da família e prometida do Conde Vronsky (Kieron Moore), Anna aparece na festa de modo deslumbrante, captando todas as atenções. É algo quase inconsciente, sem segundas atenções, mas que mesmo assim arruína os planos da amiga, monopolizando o interesse do pretendente. Ciente do estrago que pode ter feito, decide retornar para o marido no dia seguinte, mas nesse ponto não há mais volta – Vronsky vai em seu encalço, e é assim que o fogo que os atraiu, primeiro como um flerte inconsequente, irá se concretizar.

O diretor francês Julien Duvivier – contemporâneo de Jean Renoir e René Clair – em um de seus raros trabalhos em Hollywood, consegue habilmente abrir espaço na história para que Vivien Leigh, a eterna Scarlett O’Hara de ...E O Vento Levou (1939), brilhe como poucas. O dilema que enfrenta entre uma vida apagada e a excitação de uma nova paixão, a ligação com o filho ou o apelo do desejo, as aparências sociais e novo e arrebatador compromisso emocional, tudo se confunde. E assim percebemos, em cenas clássicas como a da Mesa Girante (fenômeno da época que acabou dando origem ao Espiritismo de Allan Kardec) ou nas alucinações que passa a ter, o quanto essa divisão vai se concretizando nela, até o momento em que não consiga mais se reconhecer, levando ao terrível final tão bem conhecido.

Ignorado pelas premiações da época, esse Anna Karenina oferece muito pouco aos dois intérpretes masculinos. Se por um lado conseguimos entender um pouco melhor o que se passa com o marido Alexei Karenin (Ralph Richardson, de Greystoke – A Lenda de Tarzan, 1984) e lamentamos sua rápida saída de cena, por outro agradecemos pelo pouco que somos obrigados a confrontar o inexpressivo Moore. Mas tanto o clássico da literatura russa, quanto os belos cenários, os figurinos deslumbrantes, a competente e quase onipresente trilha sonora executada pela filarmônica de Londres e a estudada fotografia em preto e branco ficam em segundo plano numa análise final: o show é de Vivien Leigh, já antecipando aqui seu olhar perturbado e arrebatador que tão bem encarnaria em seu projeto seguinte: Um Bonde Chamado Desejo (1951). Se Anna Karenina foi um belo exercício para o que viria depois, sua mera existência e realização está mais do que justificada.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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