Crítica

Sebastian gosta de Andreas. Andreas gosta de Sebastian. Mas Sebastian quer ser Ellie. E por mais que Andreas quer que Sebastian seja Ellie, segue preferindo Sebastian. Ellie, no entanto, precisa surgir. E entre estes três, não há sequer espaço para dois. Vem da Suécia o drama Algo a Romper, um interessante conto sobre identidade sexual e aceitação da condição de transgênero. Na direção, falando com conhecimento próprio sobre o assunto, está Ester Martin Bergsmark (também autor do roteiro), que anteriormente havia realizado o documentário She Male Snails (Pojktanten, 2012), festejado no circuito dos festivais e que abordava o mesmo tema. A insistência no assunto, no entanto, não reflete apenas uma pré-disposição pessoal, mas sim uma vontade de explorar novas abordagens, porém em âmbitos diversos. E o resultado é, no mínimo, estimulante.

Sebastian (Saga Becker, novato que se impôs no papel, mesmo que diante da recusa inicial do diretor, e apresenta um trabalho marcante) é um garoto andrógino que leva uma vida incômoda. Não tanto por sua condição social – assim como muitos dos seus amigos, divide um apartamento com uma colega e trabalha em algo que lhe dá um mínimo de prazer (design de interiores) – mas sim por quem ele, de fato, é. No tempo livre, vai à festas, parques e bebedeiras. Num destes momentos, encontra Andreas (Iggy Malmborg), um garoto do estilo rebelde à la James Dean, porém com uma alma sensível a ponto de permitir uma eventual aproximação entre eles. Acabam saindo juntos, dançam, ficam bêbados, se divertem. No final da noite, estão os dois no apartamento de Andreas, um pequeno flat com apenas um colchão de solteiro. “Você pode dormir aqui, se quiser”, ele diz para o visitante. E ao mesmo tempo em que tira a roupa, vira para o lado e cai quase que instantaneamente em um sono profundo.

A admiração e o desejo que Sebastian sente por Andreas é quase imediato. O outro rapaz, no entanto, leva um pouco mais de tempo para descobrir que também compartilha dos mesmos sentimentos. Porém, com ele, o conflito é maior. “Eu não sou gay”, afirma após uma noite de sexo. “Eu também não”, responde o apaixonado. O mais curioso, no entanto, é que apesar da obviedade, nenhum dos dois está mentindo deliberadamente. Andreas não é homossexual – ou ao menos não se vê como um. Ele não busca homens. Ele quer Sebastian. E esse sabe disso. A ponto que, diante desse impasse, acaba permitindo que algo surja. Que algo rompa de dentro dele. E o nome deste algo é Ellie. Ele não é mais ele. Ele é ela.

Quando Sebastian começa a se vestir com roupas de mulheres, assumindo cada vez mais uma postura feminina, Andreas fica ainda mais confuso. Afinal, se antes era um garoto que estava ao seu lado, quem está ali agora? No primeiro instante era fácil saber o que lhe atraía, para recusar – ou não – a vontade. Agora, no entanto, há apenas confusão. Quem é Ellie? Mas se para ele a problemática aumenta, o inverso não é necessariamente verdadeiro. Teve-se início um processo quase irreversível. Não há mais lugar para Sebastian. Ellie chegou, o desconforto se foi. E há certas decisões na vida com as quais precisamos aprender a conviver, pois não nos permitem voltar atrás.

Ester Martin Bergsmark faz de Algo a Romper um canto do cisne, o fim de uma etapa e o início de uma nova, melhor e, acima de tudo, diferente. Todo processo de mudança implica em sofrimento, dores e descobertas, e é exatamente o que encontramos aqui. A opção do cineasta em se centrar quase que absolutamente nos protagonistas, eliminando por completo as figuras de familiares e reduzindo ao máximo a presença de amigos e conhecidos, torna o debate entre eles ainda mais forte. Por mais perdido que Andreas esteja – e vá ficando gradualmente com o desenrolar da história, num minuto ansiando por aquilo que negava segundos antes – compreendemos perfeitamente o que se passa com ele. A questão, no entanto, é que Ellie é outra pessoa, e sua independência tem um preço. Ao qual ela está, mais do que apta, disposta a pagar.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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