A Super Fêmea
Crítica
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Sinopse
Uma bela modelo é contratada para fazer a campanha de uma pílula contraceptiva para homens. O problema será conquistar a confiança do público alvo, uma vez que todos desconfiam que o tal produto pode causar impotência.
Crítica
O humor sujo, as piadinhas, os trocadilhos e a nudez feminina. Todas as marcas da pornochanchada estão presentes em A Super Fêmea. No filme, a jovem Vera Fischer interpreta Eva, uma mulher escolhida por um grupo de publicitários para ser a garota-propaganda de uma nova pílula contraceptiva para homens. As vendas vão mal, pois os consumidores acreditam que o produto pode causar impotência. Cabe a Eva, a Super Fêmea, convencer o público de que o comprimido na verdade aumenta a virilidade de quem o toma.
Mesmo com alguns momentos genuinamente engraçados, como na cena em que Eva dá entrevista à imprensa com respostas de duplo sentido, fica evidente ao público atual que o humor de 1973 não envelheceu tão bem. É complicado entrar nessa questão sem cair no anacronismo, já que muito da comédia se baseia em coisas que hoje seriam ofensivas - há uma piada que envolve travestis tentando participar da seleção para a Super Fêmea, elas são expulsas aos gritos de "bicha!" - e até mesmo a premissa pode ser interpretada como simples pretexto para mostrar nudez e situações eróticas, algo comum nesse filão. Entretanto, ainda que não se leve nem um pouco a sério, A Super Fêmea consegue, no mínimo, levantar uma discussão a respeito do papel da mulher e da objetificação da personagem-título.
Eva é selecionada por personificar uma porção de adjetivos: "apetitosa", "envolvente" e"irresistível". Quando passa a ser a cara das pílulas "No No Baby", ela é assediada e perseguida por homens o tempo inteiro. Mais do que vender a imagem da mulher ideal, os publicitários querem vender a própria mulher, criando um sorteio (sem que ela saiba) que promete dá-la de presente ao ganhador, como se fosse um objeto. No entanto, o filme parece pelo menos razoavelmente consciente do absurdo dessa ideia ao retratar o excêntrico - e nomeado apropriadamente - Onan Della Mano (Perry Salles) como um personagem completamente louco, incapaz de ver diferença entre Eva e a manequim (literalmente um objeto) com quem mantém um relacionamento. Em determinado momento, um personagem exige que Eva tenha relações sexuais com ele, sob a justificativa de ter sido responsável pela fama e o dinheiro que o emprego de Super Fêmea lhe trouxeram. Ela o rejeita, foge e faz com que o homem seja detido. Está longe de ser um filme "feminista", é claro, mas ao menos demonstra ciência da misoginia de seus personagens.
Realizado durante o governo Médici, um dos períodos mais repressivos da ditadura militar, o filme também faz referências - algumas sutis, outras nem tanto - à situação do país naquela época. Numa cena quase metalinguística, Eva grava um comercial em que o sexo é apenas sugerido e o diretor pede uma atuação mais explícita. Quando seus colegas dizem que a censura não permitiria uma peça tão escandalosa, o diretor responde: "a censura que se...", com o falatório dos presentes não o permitindo completar a frase. Além disso, as cenas em que os publicitários elaboram o plano de usar a figura feminina, o sabor do café e o amor pelo futebol para vender as pílulas para o que Onan identifica como "Homo brasilis" parecem evocar as propagandas nacionalistas feitas pelo governo de então.
Até o desfecho completamente surreal da história remete à situação política do Brasil: quando Eva, que é garota-propaganda de um anticoncepcional, ironicamente dá à luz a cem bebês, a notícia de cada nova criança é entrecortada por imagens de gols em partidas de futebol e dezenas de homens celebrando nas ruas, nos bares e em frente à televisão. A repórter que cobre o parto chega a exclamar "Viva o Brasil! Campeão mundial de natalidade!" ao som de "Pra frente Brasil" e há até um desfile em homenagem à maior mãe do país. Impossível não pensar na maneira que Médici usava as vitórias da seleção nos gramados para exaltar o governo, como na copa de 1970.
Embora a narrativa perca a orientação na segunda metade, quando passa a focar mais nas maluquices de Onan do que no enredo, A Super Fêmea é um filme razoavelmente divertido que parece ciente de sua qualidade questionável e até confortável com isso. Pode até perder a atenção da audiência ao longo dos noventa minutos de projeção, mas diverte aqui e ali com situações absurdas, piadas simples, referências a outros filmes (a maior delas sendo a O Poderoso Chefão) e até com a breve participação de Adoniran Barbosa. Para quem se diverte com as bobagens da pornochanchada, é certamente um prato cheio.
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Olha, eu penso que a questão central com relação a Super Fêmea e a outras pornochanchadas é saber a razão do por que a ditadura deixava esses filmes existirem. As peças do Oduvaldo Viana Filho eram proibidas e quem tentasse encena-las ia preso. Agora, um filme onde um homem se apaixona por um manequim e o confunde com uma mulher podia ser exibido e ainda fazer sucesso. Não acho que a resposta a essa pergunta seja positiva e descobri-la pode ajudar muito a entender os males brasileiros atuais nas relações intimas entre as pessoas. O Brasil não conseguiu experimentar ainda uma verdadeira emancipação nas relações entre homens e mulheres: basta ver os números altos de estupros de mulheres adultas, violência sexual contra crianças e adolescentes (dentro e fora das famílias), gravidez precoce, abortos, doenças venéreas, prostituição (incluindo aqui os espancamentos de prostitutas por clientes e cafetões/cafetinas), exploração sexual de menores, etc. Isso tudo está, na suas formas atuais, está ligado a violência social, política e econômica da ditadura militar que formou o Brasil contemporâneo e muito do ethos atual brasileiro. Um filme como a Super Fêmea, ao invés de ser uma crítica a isso (independente do que pensem os que nele trabalharam), pode mais é está manifestando a terrível patologia da coisificação do ser humano (mais exatamente das classes trabalhadoras e dos seus defensores) que a ditadura militar realizou, sob uma forma de comédia erótica, permitida e tolerada pela administração Medici, a mais repressiva da ditadura.