Crítica


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Sinopse

Lucas trabalha em uma creche. Amigo de todos, tenta reconstruir a vida após um divórcio complicado. Tudo corre bem até que, um dia, a pequena Klara, de apenas cinco anos, diz à diretora da creche que Lucas lhe mostrou suas partes íntimas. A acusação logo faz com que ele seja afastado do trabalho e, mesmo sem que haja algum tipo de comprovação, passe a ser perseguido pelos habitantes da cidade onde vive.

Crítica

A Caça é tudo o que não se espera que ele seja. Dele se espera uma crítica ao estado das coisas, à sociedade europeia média ou a própria crise do capitalismo atual. Se espera dele um balanço de relações humanas tangíveis, e não meramente digitalizáveis. Também se espera dele uma exploração de uma determinada condição do pensamento moderno, ou seja, uma captura da privatização de nossos códigos morais. Rasgando e sangrando entre o corpo e a palavra, Lucas (Mads Mikkelsen), o protagonista, é objeto da convivência entre tensões claramente dificultadas pela socialização – do corpo, do olhar. Mas ele seria pequeno se fosse assim tão simples – e tão maniqueísta. Lucas é também um personagem invadido, em seu íntimo, pelo meio social, tomado pela continuação de uma série de mal entendidos (mal entendidos são, na verdade, algumas coisas estúpidas que acontecem no filme, como o espectador poderá notar). Thomas Vinterberg investiga não só doença do espírito coletivo, mas a falência de certa “desvirtualização” do estatuto da imagem. Estamos falando de um filme de uma cena, explícita e não menos dolorosa, na qual um beijo desencadeia todo o processo de violência e desespero social. Um caso freudiano. Uma imagem e basta. Há, no entanto, entrelaçada com pingos de ingenuidade moral, a consciência de que uma imagem é mais que um poder delegado à “verdade” dela mesma.

Lucas é o personagem médio europeu, de fato. Professor de uma escola infantil em uma pequena comunidade dinamarquesa, divorciado e sem a guarda do filho, ele se diverte caçando com os amigos. Mais que isso não sabemos, pois talvez não haja nada mais. Habitante de um dos países mais seculares e desenvolvidos do mundo, embora a monarquia mantenha, via constituição, a Igreja da Dinamarca (protestante luterana) como a religião oficial do país, Lucas tem tudo para seguir uma vida tranquila. Mas seu cotidiano logo se transforma para pior quando uma de suas alunas, a pequena Klara, filha do seu melhor amigo, o acusa injustamente de insinuar suas partes íntimas sobre ela, para indignação da comunidade que, dentro de um sistema venenosamente repressivo, passa a hostilizá-lo. Ninguém digere bem a ideia de que o homem que sempre pareceu moralmente correto tenha se tornado um pedófilo, pois Lucas sempre brincou com as crianças, demonstrando proximidade delas, e isso, no imaginário coletivo, era um sinal de sua perversidade. Vinterberg, para todos os efeitos e com toda sua esquizofrenia, fez um filme sobre imagens e palavras. Tudo está naquilo que os personagens veem ou pensam ver.

Mas, para o espectador, não para os personagens (são dois mundos), o que Vinterberg coloca na tela é um problema filosófico. Se não é metafísico, é no mínimo epistemológico: o desdobramento do filme diz respeito exatamente àquilo que os personagens pensam que sabem. O problema clássico é que, como fica claro dadas as condições e as evidências disponíveis, não há como ninguém saber se de fato Lucas abusou da menina. Eles o julgam através de um conhecimento indireto, pois quem fez a denúncia foi outra professora da escola a partir das palavras de Klara (denúncia para quem? Cadê a justiça?). Aqui, sim, tem início uma crítica ao instinto punitivista tão caro ao ser humano. Na ideia de fazer justiça com as próprias mãos, a comunidade passa a persegui-lo até em sua casa, o impedindo de comprar no mercado da região, o espancam e o ameaçam por todos os lados. Lucas, carta marcada, deixou de viver pois lhe extirparam a existência. Vinterberg filma tanto o esclarecimento dos juízes quanto o esfacelamento das forças do condenado.

Ora, mas se A Caça fosse um filme sobre intolerância, então não seria nada disso que levantamos até aqui, nem no sentido sociológico, tampouco no filosófico. Ele certamente não é isso. Uma vez que não há qualquer tipo de ponderação sobre o caso, pois, para os demais personagens, Lucas é culpado e ponto, não há espaço para argumentação. É só lá, na casa de Deus (a união da comunidade em torno dos símbolos religiosos resulta na grande cena do filme, que se passa numa igreja), que Lucas explode em fúria e causa a reviravolta no caso – mas uma reviravolta de argila, pois a história prossegue, o drama continua, o sangue ainda vai jorrar. Lucas pode demorar a perceber, mas a caça é ele próprio.

A súmula dessa confusão confirma os problemas das relações humanas. Estiradas a qualquer canto e facilmente rompíveis, os tácitos acordos sociais se quebram e se remontam temporariamente, quase sempre num fluxo de deboche e desarranjo. Se a fragilidade do filme de Vinterberg é tão parecida com a de seu trabalho anterior (Submarino, 2010), aquele da tragédia anunciada diante das trivialidades do nosso fracasso, a sua brutalidade é mais consistente dentro de sua específica visão de mundo: um lugar que não é especificamente de derrotados, e sim de derrotas. Mas eis que seu medo do ridículo, como aquela história do manifesto técnico-estético, lhe confere uma ingenuidade apropriada.

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é crítico de cinema, membro da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do RS. Edita o blog Tudo é Crítica (www.tudoecritica.com.br) e a Revista Aurora (www.grupodecinema.com).
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