Representante da boa onda atual do cinema pernambucano, Gabriel Mascaro nasceu em Recife no dia 24 de setembro de 1983. Formado em Comunicação Social pela Universidade Federal, estreou no cinema com o documentário KFZ-1348, em 2008. Desde então, entre outras produções do gênero em longa e curta-metragem, esteve em importantes festivais como Locarno, San Sebastian, Londres, Roterdã, Buenos Aires, Miami e Lisboa. Agora, está estreando com um longa de ficção em Ventos de Agosto, premiado no último Festival de Brasília e exibido no Festival do Rio e na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Aproveitando esse lançamento, que está entrando em cartaz nacionalmente nesta semana, o Papo de Cinema conversou com exclusividade com o diretor. Confira!

 

De onde veio a inspiração para a trama de Ventos de Agosto?
Comecei a pesquisar sobre o avanço do mar no litoral brasileiro e me deparei com várias mansões abandonadas e destruídas pelas ondas. Comecei a refletir sobre esta arquitetura ‘recente’ que em menos de 30 anos de sedimentação já virou ruína e escultura de um sonho passageiro. A ocupação desordenada do litoral do Nordeste brasileiro teve um grande impulso nos anos 1970 e 1980. Antigas vilas de pescadores ou paradisíacas reservas naturais cederam lugar à ocupação imobiliária desordenada com vários crimes ambientais para atender ao luxo de uma segunda casa perto do mar. Entre a ganância humana e o fenômeno global natural, no filme os personagens convivem cada um a seu modo com o avanço do mar. Mas ao invés de uma mensagem de alarde sensacionalista, fria e distante, o filme se concentra num pequeno cemitério à beira mar que está sendo engolido pelas ondas do mar. Também tentei construir uma personagem feminina intrigante, que mesmo forçada a viver num lugar praieiro e pacato, reafirma a urbanidade e a cultura punk. O Brasil contemporâneo se apresenta enquanto paradoxo, que mesmo com seu papel emergente na economia mundial, lugares e pessoas vivem à margem das instituições. Apenas um estranho pesquisador de som de vento aparece na vila praieira que está sendo devorada pelo mar. Entre o tecnicismo e o fetiche satírico do exótico, o pesquisador se aproxima do atraente pescador. E a partir de encontros roteirizados e outros mais espontâneos, terminamos por acessar um riquíssimo imaginário popular costeiro que lida de modo muito particular com as ‘idas e vindas’ das marés, a memória, a passagem, o pertencimento, a permanência, a morte e a vida. O documentarista Joris Ivens fez sua primeira incursão sobre o vento no filme Pour Le Mistral (1965), filmado no sudeste francês, e duas décadas depois lançou seu último filme, chamado A Tale of The Wind (1988), filmado na China. Personagem dentro do filme e já de cabelos grisalhos, ele afirmou que filmar o impossível é o melhor da vida. Meu filme é também uma citação ao trabalho do Joris Ivens.

Cena de Ventos de Agosto (2014)

Como foi a transposição de documentário para ficção, de Doméstica (2012) para Ventos de Agosto (2014)?
Mais do que usar a terminologia ‘ficção’ para evocar o lugar do ‘drama’, a ‘estratégia ficcional’ surge para mim como uma possibilidade de compartilhar a invenção. E depois de ter feito alguns documentários, as pessoas indagam: “então agora você vai fazer realmente um filme de verdade?”. A ‘verdade’ é umas das palavras mais contaminadas de significados. Para mim a estratégia ficcional é um jogo potente e este ainda mais complexo jogo de construção de personagem muito me interessa para além destes rótulos todos.

 

Ventos de Agosto já foi premiado no Brasil e no exterior. Qual a importância de reconhecimentos como esses para a carreira de um filme?
No caso de exibir no Festival de Locarno, acho que foi um grande presente receber Menção Especial numa premiação que consagrou Lav Diaz e Pedro Costa. Para além disso, espero apenas que a visibilidade que o filme ganha com prêmios e festivais faça com que mais pessoas possam ver o filme. No mais, a grande batalha para lançar o filme continua e na prática não muda muita coisa.

Cena de Doméstica (2012)

Ventos de Agosto tem uma estrutura bastante original. No início temos uma protagonista feminina, mas aos poucos o centro da trama passa para o seu par masculino. Como foi o processo de elaboração do roteiro?
O roteiro em parte segue um formato padrão e naturalmente sofreu alterações a partir da experiência de pesquisa e vivência. No filme os personagens convivem cada um a seu modo com o avanço do mar a partir de uma pequena vila quase fantástica, ainda que realista, e com um cemitério à beira mar que está sendo devorado pelas ondas. É um filme sobre passagem, mas também sobre pertencimento e permanência. Todos no filme são atores não profissionais que moram na própria vila, exceto a jovem que deseja ser tatuadora. Curiosamente, para os não atores e em especial o personagem do pescador, havia bastante roteiro escrito e diálogos. Trabalhamos alguns exercícios de improvisação e estudamos bastante as cenas. Para a atriz, o caminho foi bem distinto. A construção do personagem dela foi fruto do laboratório de vivência que ela fez antes do início das filmagens. Ela foi imaginando que ia gravar 2 diárias e terminou gravando 20. Foi todo construído e elaborado a partir da vivência dela na casa de uma senhora bem idosa e cadeirante. Dandara passou uma semana ajudando a idosa a ir no banheiro, preparando comida para ela, colocando ela para dormir, agasalhando quando sentia frio, escutando suas histórias. Depois de uma semana de convívio, a Senhora já estava chamando ela de ‘minha netinha’ sem mais distinguir realidade e ficção. Quando essas fronteiras se borram, o que é vivo brota, e o que não é vivo se torna.

A maioria do elenco é formada por atores não profissionais. Como foi a seleção e o processo de descoberta destes novos talentos?
Meu encontro com Geová, que no filme é pescador e catador de cocos, é bem curioso. Eu fiz um anúncio na vila e todos os pescadores vieram fazer o teste para o filme, menos o próprio. Havia feito vários testes, já pondo em prática algumas cenas. Dois dias depois o tal Geová me procura se desculpando pela falta e me perguntando se no filme sobrara uma vaga para cantor, já que na vida real é artesão, mas sonha mesmo é ser cantor. Abri a câmera e pedi para ele cantar uma música. Quando ele acabou, já fui combinando as datas da gravação. Escolhi ele pela forma como ele me abordou, pelos desejos dele, pela forma como ele cantou para a câmera.

(Entrevista feita por email no dia 13 de novembro de 2014)

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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