Crítica

Orson Welles é mestre de cerimônias em Verdades e Mentiras. Vestido de prestidigitador, o cineasta inicialmente exibe truques para uma criança de olhar curioso. O menino nos simboliza, nós que contemplamos fascinados a arte, enredados por seus mistérios. Filmes, pinturas e livros não seriam falsos em alguma medida, mesmo quando proferem se apoiar na verdade, em nada mais que a verdade? Na contramão, Welles promete ser totalmente sincero na próxima hora de projeção. Das belas curvas de Oja Kodar, uma presença justificada plenamente apenas próximo do fim, o documentário – se assim o podemos enquadrar sem perder parte de sua complexidade – se desloca para Ibiza, ilha paradisíaca da Espanha, cenário onde vivem dois impostores habilidosos, cujos trabalhos são basilares aos questionamentos propostos por Welles, sobretudo no que diz respeito aos limites entre o falso e o genuíno.

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Elmyr de Hory é um copiador. A impressionante capacidade de reproduzir quadros dos grandes mestres o torna um personagem peculiar. Orgulhoso de sempre ludibriar museus e especialistas, ele defende ideologicamente seu ofício e ataca a concentração de poder nas mãos dos pretensos definidores do bom e do ruim. Suas falas propiciam uma reflexão interessante, afinal de contas, a arte, tal como a concebemos, não é mais que uma manifestação, celebrada ou não mais adiante de acordo com um seleto grupo de pessoas “autorizadas” por critérios nem sempre claros. Outro dos personagens principais de Verdades e Mentiras é o menos espalhafatoso Clifford Irving, biógrafo de Emyr. Famoso internacionalmente por ter escrito também a biografia autorizada do recluso Howard Hughes, ancorada numa série de encontros celebrados como exceção, Irving foi desmascarado, pois, na realidade, nunca nem chegou perto do bilionário.

Descobrirmos que Clifford é também um charlatão. O livro sobre Hughes foi fruto de um grande embuste, de mentiras sobrepostas, como as conversas inexistentes e os depoimentos forjados. Notoriamente, Hughes utilizava sósias para despistar a imprensa, mesmo antes da clausura, algo resgatado por um Welles malicioso que, assim, adiciona outra camada às questões levantadas. Aliás, o próprio cineasta se inclui na categoria dos enganadores, lembrando-nos que seu primeiro trabalho notável não passou de uma lorota transmitida pelo rádio. A locução de A Guerra dos Mundos, texto de H. G. Wells, como se fosse um boletim verídico de notícias, causou pânico nos que acreditaram piamente na invasão marciana. Conservando o tom anterior de malícia, Welles diz que, ao invés da cadeia, a ação o levou a Hollywood. Fica implícito, sua recompensa foi um lugar na fábrica de mentiras por excelência.

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O roteiro e a montagem de Verdades e Mentiras estabelecem um fluxo narrativo em que os conceitos, as teses e as instituições são postos em xeque de maneira instigante, não professoral ou impositiva. Orson Welles se coloca na posição de animador de plateia, cicerone que nos carrega pela mão até o centro do picadeiro. Em princípio, o retorno de Oja Kodar à trama parece somente uma breve ode do cineasta ao corpo escultural da então namorada croata. Contudo, esse segmento envolvendo ela, o avô à beira da morte e o famoso Pablo Picasso, exemplifica os pontos apresentados, posteriormente condensando os procedimentos e as análises deste grande filme. Os fatos e os encadeamentos dos quais Welles lança mão, antes de visar o desmascare, subsidiam provocações necessárias e muito bem-vindas.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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