Crítica

Prematuro afirmar que Matthew McConaughey é a mais recente vítima da temida “maldição do Oscar” – afinal, faz apenas dois anos que o ator ganhou sua estatueta dourada – mas é impressionante o quanto ele vinha em uma caminhada ascendente antes do prêmio, e como tudo parece ter saído fora dos trilhos após sua vitória. Afinal, desde a consagração com Clube de Compras Dallas (2013), o astro obteve uma recepção controversa com o épico de ficção científica Interestelar (2014), foi vaiado no Festival de Cannes com The Sea of Trees (2015) e acabou escondendo o rosto por trás de duas animações, o belo Kubo e as Cordas Mágicas (2016) e o ainda inédito Sing: Quem Canta seus Males Espanta (2016). É triste perceber que outro projeto que, assim como estes mais recentes, também prometia muito, porém alcança pouco, é o escravagista Um Estado de Liberdade, que ainda que parta de uma importante história real e seja dono de inegáveis méritos, pouco acrescenta a um tema já muito explorado, prejudicado ainda por uma condução insegura e equivocada.

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No material de divulgação de Um Estado de Liberdade, o diretor Gary Ross é anunciado como “indicado a quatro Oscars”. Essa informação não está errada, porém incompleta. Afinal, nenhuma de suas indicações foi na categoria que aqui desempenha, a de realizador (ele concorreu anteriormente como roteirista e produtor). Conhecido por dramas lacrimosos como Seabiscuit: Alma de Herói (2003) e por ter conduzido o capítulo introdutório de Jogos Vorazes (2012), Ross tinha em mãos um material interessante – um conto de desobediência civil em meio à Guerra da Secessão dos EUA – porém, a impressão que se tem ao assistir ao filme, é que o cineasta foi com muita sede à sua fonte, sem o distanciamento necessário para separar o joio do trigo. Ou seja, há muito em cena, e nem tudo é igualmente interessante.

Newton Knight (McConaughey, em atuação de bastante entrega) é um sulista convocado para servir no campo de batalha como auxiliar de enfermagem. Tal função consiste, basicamente, em recuperar os corpos dos feridos e carregá-los até os médicos. Porém, quando o sobrinho aparece entre os recém chegados trazendo consigo uma baioneta e lágrimas de medo que não consegue represar, por mais que tente protegê-lo, a única coisa que consegue fazer é, poucos instantes após os primeiros tiros, é recuperar o corpo do rapaz morto e levá-lo até sua irmã, mãe do jovem. Desertores, no entanto, são vistos com mais desprezo que os inimigos do norte, e tal condição não o coloca numa posição confortável. Mas Knight se guia pela sua própria voz, pelo que considera justo, independente do que os outros – ou a Lei – afirme ser certo ou errado.

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Assim, quase como por acidente, nosso protagonista se vê como herói de vizinhas abandonadas à mercê do destino, que são mais vítimas do exército que deveria defendê-las – já que seus maridos estão servindo a um conflito cujos interesses dizem mais respeito aos bolsos de outros – do que de supostos invasores. Isso também o leva a ser procurado por diferentes forças, obrigando-o a um autoexílio em regiões pantanosas, onde a cavalaria não pode alcançá-lo. Com ele estão negros, escravos que fugiram e não tem para onde ir. Será dessa união que virá a força para combaterem as desigualdades que imperam na sociedade em que vivem, mostrando que mesmo dentre os mais fracos pode surgir a motivação necessária para que a diferença se faça ouvir.

O título original Free State of Jones diz respeito ao Estado Livre de Jones, o nome que estes rebeldes revolucionários escolhem para batizar a região que, após repetidas investidas, conseguem conquistar da Federação. Cria-se, assim, um lugar utópico, onde todos são iguais e o bem comum seria algo a ser perseguido por todos. Ou seja, o espírito comunista nascendo de forma pura, como resposta a uma diretriz capitalista e imperialista. Se Gary Ross e o co-roteirista Leonard Hartman tivessem se focado apenas neste aspecto e nas consequências desse levante, talvez Um Estado de Liberdade fosse um filme mais relevante e com uma pertinência que ressonasse até os dias de hoje. Almeja-se mais, e esta busca se revela irregular justamente por não conseguir equilibrar todos os elementos dispostos em cena.

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A jornada de Newton Knight como líder revolucionário não parece ser suficiente. Por isso, abre-se espaço ainda para as consequências do envolvimento dele com uma ex-escrava (Gugu Mbatha-Raw, em participação discreta, porém eficiente) e a repercussão familiar desta relação, indo adiante por décadas entre os descendentes dos dois, na tentativa de evidenciar o quanto esse preconceito perdurou nos Estados Unidos. As narrativas paralelas, no entanto, ao invés de contribuírem com o todo, servem apenas como distração, desgastando o interesse mesmo dentro os espectadores diretamente envolvidos pelo tema. E ainda que o exemplo enfocado mereça esse resgate, o conjunto falha em manejar com eficiência os elementos que tinha a dispor. Um Estado de Liberdade é um filme que merece mais atenção pelo que representa do que pelo resultado fílmico que oferece.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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