Crítica
Leitores
Sinopse
Em Um Cabo Solto, fugindo dos seus colegas da polícia, Santiago, um soldado argentino, atravessa a fronteira para buscar refúgio no Uruguai. Sem dinheiro ou proteção, começa a reconstruir a vida com a ajuda dos habitantes locais. Drama.
Crítica
Pertencer a um território é sempre experiência atravessada por paradoxos. Há orgulho em chamar um espaço de seu, como se vê nas manifestações culturais e esportivas espalhadas pelo mundo, mas também existe a curiosidade de reconhecer, do outro lado do rio, um povo que parece quase reflexo de si mesmo, como belgas e holandeses, por exemplo. Mas entre argentinos e uruguaios, essa proximidade beira a confusão – e, mesmo sob risco de heresia, poderíamos dizer que são parecidos até demais. Ainda assim, a centelha do bairrismo se mantém acesa, marcando diferenças e disputas simbólicas. É nesse cenário, entre identidades que se cruzam e tensões que resistem, que se insere a história de um policial em fuga, personagem que revela as nuances desse contraste de vizinhança tão fértil e provocador.

Na trama, o cabo argentino Santiago, por razões inicialmente veladas, precisa escapar de seus próprios colegas da corporação. Atravessar a fronteira rumo ao Uruguai torna-se, ao mesmo tempo, risco e esperança, já que sua sobrevivência dependerá da solidariedade de estranhos. Desprovido de recursos e sem nenhuma rede de proteção, o personagem encontra no acolhimento popular uma chance de reconstrução. Com sua inteligência e generosidade, vai costurando relações e, nesse processo, conhece mulher na qual deposita expectativas de afeto e cumplicidade. O que começa como fuga passa a ser também busca por pertencimento, marcada por encontros fortuitos e descobertas pessoais.
O roteiro de Daniel Hendler – experiente ator de títulos como O Abraço Partido (2004), e cineasta experimentado com projetos como Norberto Apenas Tarde (2010) – aposta menos em grandes reviravoltas e mais no valor das entrelinhas. Todos já se perguntaram: de quem é o doce de leite? Quem inventou o tango? Quem tem o melhor futebol? Quem toca a milonga com mais paixão? Tais trivialidades funcionam como retrato de identidade partilhada, mas também como pontos de atrito. Sergio Prina dá vida a Santiago com olhar curioso e fala permeada por delicadeza, o que torna crível sua travessia entre choque cultural e desejo de adaptação. A combinação entre comédia e drama surge daí, equilibrando leveza e densidade em medidas precisas.

Hendler não se apoia apenas nas questões simbólicas, mas enriquece sua narrativa com personagens que trazem humor e densidade a um ambiente que se apresenta como comum, mas esconde tensões profundas. Néstor Guzzini, César Troncoso, Pilar Gamboa e, principalmente, Alberto Wolf acrescentam autenticidade, emprestando suas próprias origens a esse retrato do “fim do fundo da América do Sul”, já diria Vitor Ramil. O resultado é obra que consegue ser divertida e reflexiva, leve e densa, sem nunca perder o contato com as raízes locais. Se o desfecho não abre tantas possibilidades quanto poderia, ainda assim deixa registro marcante de um espaço peculiar, onde as semelhanças e diferenças se entrelaçam em jogo fascinante. Um filme que encontra beleza justamente na fronteira: naquilo que separa, mas também une.
Filme visto durante o 35º Cine Ceará, em setembro de 2025
Últimos artigos deVictor Hugo Furtado (Ver Tudo)
- Reynaldo Gianecchini :: Entrevista com o mestre de cerimônias do Festival de Cinema Italiano no Brasil 2025 (Exclusivo) - 31 de outubro de 2025
 - Balada de Um Jogador - 30 de outubro de 2025
 - Bom Menino - 30 de outubro de 2025
 
				
Deixe um comentário