Crítica

No documentário (com cara de extra de DVD) Robert Altman, Um Retrato (1996), o cineasta biografado comenta que toda a ideia para a realização de Três Mulheres nasceu de um sonho que teve, no qual enxergava com clareza não apenas a premissa de duas mulheres trocando misteriosamente de personalidade, mas também quem interpretaria essas personagens (Shelley Duvall e Sissy Spacek) e em que tipo de ambiente a história se desenrolaria (um deserto, no caso, o californiano). E, de fato, o filme mergulha fundo numa atmosfera onírica, por vezes remetendo mais claramente a um pesadelo – a recorrente presença de figuras monstruosas pintadas por Willie (Janice Rule) contribui bastante nesse sentido.

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Altman era um mestre da narrativa e, mesmo realizando um filme de difícil decifração, ele consegue tragar o espectador para dentro da história que está contando, ao invés de simplesmente promover o esperado afastamento diante de algo que não se entende. Esse feito, claro, remete ao cinema que David Lynch faria nas décadas seguintes (Eraserhead, sua estreia na direção, é do mesmo ano de Três Mulheres), sobretudo a filmes como A Estrada Perdida (1997), Cidade dos Sonhos (2001) e Império dos Sonhos (2007). Mas se Lynch por vezes se aproxima do horror absoluto, reproduzindo o que há de mais angustiante na experiência de um pesadelo, em Três Mulheres Altman permanece simplesmente no terreno do estranhamento. Ele parece olhar com frieza, e de uma distância relativamente segura, para as figuras que retirou de seu sonho para botar na tela. Quase tentando estudá-las, entendê-las, provavelmente sob a perspectiva psicanalítica – não à toa, numa entrevista também presente em Robert Altman, Um Retrato, Shelley Duvall busca construir uma analogia entre as personagens do filme e as estruturas mentais da teoria freudiana (id, ego e superego).

Nesse sentido, a troca de personalidades ocorrida a partir de um trauma físico tem menos a ver com o evento semelhante de A Estrada Perdida do que com o de Persona (1966), de Ingmar Bergman. Isso porque se Lynch flerta constantemente com gêneros estabelecidos do cinema clássico norte-americano, como o noir e o terror, Bergman prefere, como Altman, um registro mais frio, cerebral, analítico sobre a história de duas mulheres que se fundem em uma só personalidade.

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É interessante notar, por sinal, como os filmes de Bergman exerceram influência sobre importantes diretores da Nova Hollywood, que, com maior liberdade artística, tentaram se aproximar de um cinema europeu mais experimental formalmente e denso dramaticamente. Vale lembrar Woody Allen e seu esforço (consideravelmente bem-sucedido) de emular Bergman no excelente Interiores (1978). E a experiência de Altman em Três Mulheres, realizada após uma série de filmes do cineasta com temas e/ou em gêneros muito ligados ao cinema norte-americano (M.A.S.H., O Perigoso Adeus, Renegados Até a Última Rajada, Nashville e Oeste Selvagem), é bem sintomática das pretensões da turma da Nova Hollywood de alargar os limites estéticos e narrativos do cinema produzido no país. Nesse caso específico, tem-se um filme com personagens e ambientes muito próprios dos Estados Unidos – duas garotas caipiras texanas, o deserto californiano e uma série de referências ao velho oeste –, mas enquadrados numa perspectiva de ruptura com o formato hollywoodiano clássico num grau talvez impensável antes da década de 1970.

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é um historiador que fez do cinema seu maior prazer, estudando temas ligados à Sétima Arte na graduação, no mestrado e no doutorado. Brinca de escrever sobre filmes na internet desde 2003, mantendo seu atual blog, o Crônicas Cinéfilas, desde 2008. Reza, todos os dias, para seus dois deuses: Billy Wilder e Alfred Hitchcock.
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