Crítica

A ação de Três se passa quase totalmente no interior de um hospital. Quando muito, a câmera passeia brevemente pelo exterior, contudo sem afastar-se demasiado, como no registro da chegada à ala da emergência de um bandido (Wallace Chu) baleado na cabeça, escoltado por uma horda de policiais. Esse paciente visado pela lei, que corre sério risco de morte caso não venha a ser operado, zomba da vigília policial e da preocupação da doutora (Wei Zhao) designada para cuidar do seu estado. O diretor Johnnie To se vale de coadjuvantes curiosos para demarcar a singularidade desse espaço. Vemos um paciente psiquiátrico, dado a cantar até mesmo quando a tensão paira no ar, um rapaz paralisado que não perde oportunidades de expressar sua fúria contra o procedimento médico responsável por sequelas, a esposa que cuida do marido, entre outros. Sedimentadas no que lhes caracteriza superficialmente, essas pessoas conferem um plano de fundo interessante à dinâmica que une os três protagonistas.

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Afeito a citar o filósofo Bertrand Russel, a utilizar sua evidente inteligência como arma para ganhar vantagem, em virtude de uma pretensa superioridade intelectual, o bandido é um desafio e tanto para o chefe de polícia (Louis Koo) encarregado de acompanhar sua prisão. Frente ao desafio, esse portador de distintivo se dispõe a garantir a prevalência da lei, nem que para isso seja necessário distorcer seus limites e incorrer em violações. Já a doutora se encontra numa grande crise, condição decorrente dos seguidos insucessos cirúrgicos que colocam em xeque a qualidade de seu trabalho. Os personagens de Três são o que se apresentam de pronto, sem camadas a serem desenvolvidas mais adiante. Principalmente a disputa entre o representante da ordem e o marginal, este que, a despeito da desvantagem óbvia de estar imobilizado, parece sempre um passo à frente, garante a manutenção da expectativa.

Três é um filme essencialmente físico, aliás, como boa parte dos realizados por Johnnie To, cineasta chinês cujo trabalho sobressai exatamente pela excepcional utilização dos espaços e dos movimentos, sejam eles o das figuras em cena ou os da câmera, dispositivo este posicionado estrategicamente no mais das vezes. Tal tendência chega ao ápice na belíssima cena do tiroteio na enfermaria, um balé violento que transcorre em ritmo lento exatamente para capturar as minúcias daquela barbárie embalada por uma canção amena, portanto, contrastante com a ferocidade. A oposição entre bem e mal é bastante marcada, com agentes estritamente definidos. Os personagens são moldados e explorados a partir do que se espera de suas colocações profissionais, não o contrário. O detalhamento apregoado como necessidade por Johnnie To se deixa perceber também em pequenas coisas, vide a exposição das cirurgias.

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Mesmo que tenha um tom relativamente sério, Três não se furta de lançar mão de alívios cômicos e mesmo de oferecer distrações inofensivas, sem qualquer reverberação mais significativa. Exemplo disso, o já mencionado paciente psiquiátrico, que está ali apenas para aliviar o clima. O rapaz paralisado se conecta diretamente com o núcleo da culpa da doutora, sensação que a faz duvidar da própria competência. O conflito moral do chefe de polícia tampouco se apresenta como determinante, servindo, assim como a angústia da médica, somente de tempero à trama. Johnnie To faz um filme fortemente vocacionado à catarse, que se vale de arquétipos com propriedade para levar adiante uma história funcional como pretexto, já que o importante é a colisão de forças contrárias, dela decorrendo algo muito vibrante e divertido, sem aspirar grandeza, complexidade psicológica ou algo que a valha.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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