Summer of Soul

14 ANOS 118 minutos
Direção:
Título original: Summer of Soul (...Or, When the Revolution Could Not Be Televised)
Ano: 0128
País de origem: EUA

Crítica

7

Leitores

Sinopse

Um festival musical foi organizado em 1969, no bairro do Harlem, em Nova Iorque, para celebrar a música norte-americana e a história afro-americana. A ocasião praticamente coincidiu com o famoso evento em Woodstock.

Crítica

O fato de as gravações do Harlem Cultural Festival terem permanecido inéditas até hoje diz tanto sobre o evento quanto seu conteúdo musical. No mesmo verão em que se organizou o Festival de Woodstock, quando o homem pisava na Lua e dezenas de Panteras Negras aguardavam um julgamento histórico, a imprensa considerou irrelevante exibir um evento apenas com artistas negros, para o público de 300 mil pessoas negras no Harlem. Alguns cinegrafistas, certos da importância musical deste episódio, registraram as apresentações de Nina Simone, Gladys Knight, Stevie Wonder, B.B. King, Sly and the Family Stone, Mahalia Jackson e tantos outros, porém jamais encontraram compradores ao material. A realização do documentário reflete o racismo estrutural norte-americano, associado ao apagamento das conquistas e da cultura negras. Foram necessários 52 anos para o público ter contato com um evento deste porte, repleto de implicações sociais e simbólicas. O fato de ter sido escondido diz muito, ironicamente, acerca de seu potencial – caso não incomodasse tanto, não teria permanecido nas sombras.

Em sua estreia como cineasta, Amir “Questlove” Thompson assume com vaidade o fato de ter sido o primeiro a revelar tal arquivo. Ciente da preciosidade que possui em mãos, esforça-se em incluir todos os músicos presentes naquele verão em 1969 e destacar o impacto do festival para cada um deles – ele apresenta o material como quem desembala uma delicada peça de antiquário. Por isso, de modo didático, a montagem menciona o nome das canções, foca-se especificamente nas pessoas que mais se divertem em meio à multidão, alterna com depoimentos dos artistas idosos assistindo às imagens com largos sorrisos e lágrimas nos olhos. O orgulho é compreensível diante de tamanha conquista. Por isso, idealiza-se voluntariamente a representação, onde tudo parece ter corrido à perfeição, apenas com pessoas sorridentes, junto aos entrevistados cobertos de pesada maquiagem, em roupas formais, sob intenso maquinário de luz. O autor substitui o despojamento das conversas à aparência solene, a partir de uma produção com recursos suficientes para uma ostensiva mixagem de som, restauração dos arquivos e acesso a artistas relevantes. “Silêncio! Gênios criando”, parecem dizer as cenas.

Enquanto isso, contextualiza o período para a história negra e destaca as condições que permitiram a reunião musical. O ambicioso roteiro parte das lutas dos movimentos civis e dos assassinatos de Martin Luther King, Malcolm X., John F. Kennedy e Robert F. Kennedy para chegar à formação do Harlem, à integração com os cidadãos latinos, as vanguardas musicais e mesmo os movimentos revolucionários da América Latina. Summer of Soul (… Ou, Quando a Revolução Não Pode Ser Revolucionada) (2021) sustenta a tese de que o evento ocorreu num instante específico de conscientização da negritude, incorporação da ancestralidade e politização da música popular. Questlove insiste na associação íntima entre o soul e a luta contra o passado segregacionista. Assim, traça um panorama amplo a respeito das relações de gênero no país, utilizando a música como ponto de partida para mencionar os cabelos afro, as roupas de origem africana, a religião progressista ilustrada pelos pastores Jesse Jackson e Al Sharpton, por exemplo. A montagem ágil, colando-se ao ritmo das canções, transita de maneira fluida entre tópicos e apresentações nos palcos, retornando a alguns artistas quando evocam temas explicitamente militantes em suas músicas. 

Alguns fatores poderiam ser questionados. Entre tantos cantores e compositores fundamentais ao período, a incorporação do ator Chris Rock nas entrevistas soa deslocada – que relação ele possui com a música, ou o Festival de Harlem? Mavis Staple possui uma fala longa e potente, sendo a única presente apenas em voz – teria sido um problema na captação de imagem, uma exigência da artista? Defensor de um afeto negro compartilhado no interior da comunidade, o cineasta incorpora sem questionamentos o uso eleitoral do evento por parte de políticos brancos, e evita detalhar outros casos de apagamento histórico negro na reta final. Paira a impressão de que o documentário visa energizar um público carente de referências e descrente no potencial revolucionário da arte, mas sem provocar os detentores do poder nem apontar dedos dentro da elite branca responsável pela segregação. Quais canais se recusaram a exibir o material? Como se pronunciam a respeito hoje? Por que o cinegrafista responsável pelos registros tem o rosto ocultado pela montagem? O Harlem obteve representação política negra e latina nos anos a seguir? De que maneira a música produzida hoje no local dialoga com aquela apresentada há cinco décadas? Estes fatores teriam sido importantes para efetuar a ponte entre o passado e o presente, ou entre o racismo histórico e as possíveis evoluções e involuções em tempos de George Floyd e Breonna Taylor sob o regime trumpista. 

Ao menos, o filme oferece uma experiência agradável, fluida, muito profissional no agenciamento de imagem e som, apesar das ambições autorais limitadas. Questlove acredita que a música fala por si própria, razão pela qual interfere o mínimo possível no material bruto dos shows e discursos. Ele efetua um mergulho complexo na sociedade norte-americana dos anos 1960, deixando a potente apresentação de Nina Simone ao fim, em forma de clímax incendiário. Em contrapartida, tira conclusões magras a respeito das consequências (ou falta destas) na música, na sociedade e na política norte-americana de 2021, data em que o projeto é concluído. As melhores análises históricas são relacionais, geracionais, expandindo os fatos para um debate contemporâneo. O diretor tateia este caminho em partes, justapondo o valor imenso daqueles artistas e canções de 1969 ao seu valor, mais modesto, de ter descoberto, articulado e exibido este conteúdo atualmente. Ele possui a perspicácia de mencionar sentimentos e sentidos, impressões de cores, texturas, olfato. Discorre-se a respeito do cheiro de “laquê e frango” deste “piquenique negro”, nas palavras dos frequentadores nostálgicos. O artista faz o possível para promover uma experiência de imersão e identificação ao espectador.

Filme visto na 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, em outubro de 2021.

Bruno Carmelo

Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *