Crítica

Em seu segundo longa-metragem, o cineasta Manuel Abramovich apresenta uma instigante narrativa documental sobre meandros do exército argentino. As primeiras imagens oscilam entre o protocolo do pelotão em formação e a descontração casual que ameniza a rigidez. Em meio a tantos jovens que decidem simultaneamente seguir a carreira militar, Juan José Gonzalez é erigido ao protagonismo dessa observação do cotidiano, focada em vieses esclarecedores, embora não necessariamente atendentes das expectativas de um percurso convencional. O insuspeito tom cômico é evidenciado pela habilidade no apontamento de instantes quase banais, mas que deflagram pequenos absurdos curiosos, sendo o maior deles a existência de três formas de arrumar as camas no quartel, de acordo com o dia da semana. O soldado tenta absorver tudo, decorando, num só tempo, dobras e equivalências “vitais”.

A atenção de Abramovich geralmente se detém nas minúcias, muitas vezes esquadrinhando Gonzalez como um personagem ficcional. O diretor se mostra interessado nas expressões, nas reações a determinadas coisas que acontecem fora de quadro. Isso se intensifica quando o soldado resolve entrar para a banda marcial, tocando especificamente o tambor, um instrumento tão importante como simbólico aos portenhos, fundamentalmente não apenas aos militares. O praticamente menino contempla o discurso motivador de seu instrutor, homem provavelmente de patente mais alta que o convida a entender a importância histórica da percussão sob sua responsabilidade. As batidas características do instrumento anunciaram batalhas, êxitos e rendições. Bem imaterial da cultura argentina, também fala muito às raízes do povo, sendo, portanto, dupla e simultaneamente emblemático em duas grandes tradições.

Soldado segue por uma senda singular, apostando na somatória de momentos com força dramática própria. A sucessão de ensaios e demais procedimentos ligados à banda confere ao filme um insólito e bem-vindo caráter musical. Visualmente, há a predominância de planos longos, nos quais o âmago é bem definido, assim como suas intenções de proeminência. De certa maneira, ao tornar Gonzalez um eixo gravitacional, o realizador também nos permite acompanhar a linha divisória entre a adolescência e a vida adulta. Quando ele regressa ao convívio com a mãe, num dos dias de folga, parece mais menino que na companhia dos colegas fardados, embora mesmo ali conserve olhares indecisos, próprios de quem tateia as possibilidades, questionando-se constantemente se as decisões tomadas foram as melhores. Demais procedimentos são capturados como convenções imprescindíveis aos aquartelados.

Embora transcorra num ritmo lento, primando pela extração de significados da mirada aparentemente descompromissada de ocasiões rotineiras, Soldado poucas vezes incorre em reiterações contraproducentes. Manuel Abramovich cria uma narrativa pulsante, apesar da imobilidade da câmera enquanto dispositivo de registro, o que atribui praticamente à ótima montagem de Anita Remón o papel de zelar pelo ritmo. Aliás, falando de cadência, temos até o pequeno vislumbre do carnaval dos nossos hermanos, numa breve cena em que Gonzalez se embevece pela energia dos batuques, contudo sem a formalidade e sisudez militares. Marcado por uma insuspeita leveza, o longa-metragem não se furta de apresentar a disciplina necessária para fazer parte do exército argentino, mas tampouco reveste essa abordagem de solenidade, distanciando-se da austeridade bastante associada aos milicos, porém sem querer afrontá-la.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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