Crítica

Há dez anos, quando Serras da Desordem estreou na Mostra de Tiradentes, Andrea Tonacci sentou-se na última fila da plateia. Foi dali que emitiu a modesta opinião sobre a recepção do público. “Eles ficaram até o final. Parece que acompanharam o filme”. Ontem, o diretor ítalo-brasileiro voltou ao evento para a exibição do mesmo filme, agora como homenageado. O que se viu é que, passada uma década, seu trabalho continua prendendo a atenção do público pela originalidade e força de sua história.

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O longa apresenta três momentos bem marcados. No início, acompanhamos a convivência de uma tribo indígena junto à natureza. A cultura de homens, mulheres e crianças completamente assimilados ao seu meio nos é apresentada pelo íntimo olhar antropológico do diretor. A fogueira realizada de forma primitiva – mas que para eles é a única forma – e os banhos de rio, a relação cordial e igualitária com os animais. Tudo faz parte de uma harmonia desconhecida e fascinante. Um mundo imaginário que nos deslumbra há muitos anos sem que ainda consigamos respeitá-lo devidamente.

A quebra da relação entre índios e natureza introduz o segundo momento de Serras da Desordem, com a chegada do homem branco. O desejo por terras e riqueza produz um massacre. A força desigual do conflito praticamente destrói a tribo, aniquilando ou separando os integrantes. É então que surge Carapiru como centro do filme. O índio sobreviveu ao ataque escondendo-se na mata. Perdido, vagou anos até ser acolhido por uma pequena vila.

O reencontro com os brancos – que assumem o paradoxal papel ora de algozes ora de anfitriões – recoloca a narrativa em estado de observação. As diferenças culturais são o centro deste terceiro momento, que segue até Carapiru ser apresentado em Brasília, em um momento midiático que repercutiu de forma a acordar o país para a necessidade de políticas indigenistas, até, posteriormente, Carapiru ser levado de volta a tribo, dez anos depois de fugir da região.

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Tonacci constrói Serras da Desordem reencenando um evento histórico. Ao fazer isso, tem a possibilidade de reinterpretar e exemplificar o passado. Para tal, acolhe dentro da narrativa um mosaico imponente dos grandes empreendimentos nacionais, composto por uma montagem acelerada, tal qual o ritmo da ânsia desenvolvimentista do país. As estradas, a corrida pelo ouro, as grandes construções. O Brasil esquecendo do Brasil. Presentes no enredo, ação e observação alteram-se como dois grandes fios condutores para a composição desse bonito percurso de retorno à casa. Dominado por um caráter humano, o filme tem o poder de permitir a reflexão sem se tornar um mártir da causa. E se a permanência é o maior teste pelo qual qualquer filme precisa passar, podemos dizer que Serras da Desordem passou.

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é crítico de cinema, membro da ACCIRS - Associação dos Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul, e da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Tem formação em Filosofia e em Letras, estudou cinema na Escola Técnica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Acumulou experiências ao trabalhar como produtor, roteirista e assistente de direção de curtas-metragens.
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