Queens of the Qing Dynasty

14 ANOS 122 minutos
Direção:
Título original: Queens of the Qing Dynasty
Gênero: Drama
Ano: 0215
País de origem: Canadá

Crítica

4

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Sinopse

Star é uma jovem deficiente enviada ao hospital após uma nova tentativa de suicídio. An, um imigrante chinês homossexual, é encarregado de supervisioná-la durante a internação. Os dois formam uma amizade inesperada.

Crítica

Este drama parte de uma configuração clássica do subgênero indie: a reunião entre duas figuras marginalizadas, incapazes de socializar, encontrando uma na outra a oportunidade de acolhimento. De um lado, encontra-se Star (Sarah Walker), garota com graves deficiências cognitivas, internada no hospital após uma nova tentativa de suicídio, desta vez via ingestão de veneno. Ela é órfã, vivendo sem a ajuda de qualquer familiar ou amigo. Por isso, entra em cena An (Ziyin Zheng), imigrante chinês homossexual, que precisa de “pontos de cidadania” para obter a permissão de estadia definitiva no Canadá. A ajuda a internos locais seria um passo suplementar rumo à naturalização plena. Enquanto isso, sonha em ter um corpo de mulher, ou conseguir um marido indiano que o trate com luxos e mimos, assim como as rainhas da dinastia Qing. Ele possui sonhos distantes e idealizados, transparecendo o primeiro passo para a descoberta de sua transexualidade. Ela não carrega sonho nenhum, nem conflitos com os desejos a longo prazo, pois vive num eterno presente. A menina tem os olhos arregalados, sem piscar, além de uma fala mecânica, sincopada. Já ele transborda de doçura e melodia, entoando cânticos tradicionais de seu país e baladas românticas de Céline Dion. A diretora Ashley McKenzie enxerga no encontro entre eles uma chance de equilíbrio rumo a um meio-termo considerável saudável. Esta forma de cinema nasce de uma proposta conciliatória.

A cineasta transparece uma compreensão muito particular da estética independente. Ela opta por imagens próximas de um formato quadrado, em longos planos fixos onde os rostos dos protagonistas ocupam a quase integralidade da tela. As cores são dessaturadas, superexpostas, tendendo a um mundo em tons pastéis, seja devido à paleta pouco convidativa do hospital, seja pelo inverno rigoroso que cobre as ruas de neve. Em especial, a trilha sonora intervém de maneira inesperada na narrativa, através de uma série de distorções altas, perturbadoras, combinando o ruído de objetos comuns com distorções eletrônicas de instrumentos tradicionais. Cada vez que a dupla permanece em silêncio (algo que ocorre com frequência), os chiados, apertos, tiques e pequenas explosões insistem em romper com a reflexão e chamar atenção excessiva a si mesmos. Esta música prejudica bastante a imersão no filme, introduzindo atrito onde havia leveza, ou certa forma de angústia onde parecia existir paz. Talvez a cineasta busque uma forma de equilíbrio de tons, ao apelar a dois caminhos extremos: uma imagem plácida até demais, sobreposta a estímulos sonoros incômodos e agressivos. Ela propõe que seus personagens se encontrem num meio-termo, mas no que diz respeito às escolhas estéticas, jamais efetua uma concessão semelhante.

Enquanto isso, a comunidade ao redor desaparece: os heróis são privados de amigos próximos, familiares com quem se importem de verdade, namorados ou antigos colegas de trabalho. Para um retrato social, surpreende o desinteresse da autora na construção de laços afetivos capazes de fornecer aos protagonistas algo a perder (no caso de uma internação compulsória ou uma extradição ao país de origem, por exemplo). Eles constituem núcleos autossuficientes, de aparência desafetada ou indiferente. A estratégia do buddy movie se dilui em termos de tom: este gênero costuma conceber um personagem frenético junto a outro depressivo, ou um extrovertido face ao colega tímido. Aqui, eles demonstram nível equivalente de morosidade, repetindo-se ao invés de se completarem. Seus diálogos tampouco exercem peso significativo no desenrolar da trama: os dois se restringem a falas banais a respeito de seus gostos ou medos, como se estivessem apresentando-se ao outro (e ao espectador) durante a integralidade da experiência. No final, conhecemo-nos bem, embora suas jornadas se limitem a uma presença ausente, um estado de torpor permanente. Afinal, a condição de An e Star seria crônica (a doença dela, o estado de estrangeiro dele), de modo que se contentam com as poucas opções de ações e movimentos oferecidas pelo roteiro. Nenhum dos dois busca qualquer aventura pessoal, revelando uma postura cômoda, pouco ativa.

Ao final, Queens of the Qing Dynasty (2022) busca transmitir uma mensagem singela: “Somos todos iguais, de certa maneira”, conforme afirma o garoto em duas oportunidades. Embora a proposta de equiparar os indivíduos por sua humanidade seja bem-intencionada, ela despreza as especificidades de uma deficiência mental e de um indivíduo imigrante e LGBTQIA+. Estas identidades não podem ser consideradas iguais em suas diferenças, ou seja, elas merecem respeito em igual medida, porém decorrem de fatores variáveis, e implicam em responsabilidades distintas dos indivíduos em questão, dos governos e das comunidades locais. Para McKenzie, pouco importa: eles se equivalem, e descobrem sua força quando se unem. Por isso, a conclusão permite um generoso salto no tempo a partir do qual os problemas insolúveis se resolvem, magicamente, devido à boa vontade e a um otimismo feroz. Podemos aplaudir a crença numa melhoria da sociedade, porém vale contestar a simplicidade mágica com que estes conflitos se solucionam — sem sabermos exatamente de que maneira, ou a qual custo. O drama sustenta uma aparência próxima do fabular, acreditando na moral de que tudo tende a se consertar de maneira natural, num futuro próximo, rumo a um terreno de compreensão e empatia mútuas. Tal discurso é veiculado por imagens apáticas, por meios sorrisos e dores módicas. Resta uma experiência tão potente quanto seus personagens, tão marcante quanto a passagens destes pelos hospitais, restaurantes e bares da cidade.

Filme visto no 72º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em fevereiro de 2022.

Bruno Carmelo

Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.

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