Quatro Meninas

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Sinopse

Em Quatro Meninas, em um casarão abandonado, um grupo enfrenta desafios de convivência. As moças negras exploram poder, amor e sonhos de futuro, enquanto as brancas resistem a assumir tarefas domésticas, cuidar de si e reconhecer erros. Quando uma antiga ameaça retorna, todas precisam se unir para sobreviver. Drama.

Crítica

A questão da reparação histórica é mais complexa do que qualquer análise superficial poderia apontar. Para começar, é impossível estabelecer relações de igualdade quando um dos lados tem sido violentado, ignorado e abusado há séculos, como se o passado pudesse ser apagado e o hoje representasse a oportunidade um início zerado, sem bagagem com a qual ser confrontada. Frente a tal constatação, se torna difícil apreciar um longa como Quatro Meninas já a partir do título, que durante o desenrolar da ação apenas confirma um equívoco a ser perseguido por toda a narrativa. Afinal, esta é a história não de quatro, mas de oito moças. Sobrepujá-las como se umas fossem o espelho das outras é apagar uma demanda antiga, como se o desespero de umas pudesse ser equiparado ao desgosto de outras. Não é uma questão de apenas observar com atenção as diferenças entre elas – essas existem, e não são poucas. Mas, também, de perceber que enquanto os movimentos de umas são guiados pela necessidade e pela urgência, os daquelas cujos paralelos não se sustentam seguem apenas anseios e vontades particulares. É o todo contra o indivíduo. E as semelhanças entre elas são menores do que tudo aquilo que as afastam.

Quatro jovens, não mais adolescentes, ainda dando seus primeiros passos na vida adulta, decidem fugir. O ano é de 1885 e o lugar é um Brasil tomado pela escravidão. Essas garotas, importante dizer, são negras. E o que querem é abandonar uma realidade de abandono, de desrespeito, de agressões e serventia. Ambicionam uma existência na qual não se vejam obrigadas a se colocar como se fossem menos do que seres humanos, que possam levar suas vidas com dignidade e até mesmo pequenas conquistas, como uma família, filhos, uma casa, um cotidiano que parece tão simples, mas que delas se mostrava absolutamente distante. Quando, enfim, decidem partir, após mais uma violência, não se veem sozinhas. Elas têm uma a outra para se apoiar, mas não apenas isso. É quando a diretora Karen Suzane e a roteirista Clara Ferrer estabelecem uma relação direta com outras quatro garotas. Essas também tem seus motivos para não se conformar com a vivência frente a qual até então estão sujeitas. A ida para o convento, a viuvez precoce, um noivado arranjado e a negativa de estudar numa universidade. Esses são os motivos dos seus protestos. Mas seriam algum deles forte o suficiente para contrapor um outro lado sustentado pela escravidão? Difícil achar tal meio-termo.

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A despeito da proposta problemática, há outros tropeços durante o curso de Quatro Meninas. O elenco restrito resume-se quase que praticamente às oito protagonistas, com apenas dois acréscimos dignos de nota: dona Iaiá (Dani Ornellas), a senhora experiente que lhes serve o exemplo de que uma outra vida pode ser possível, e Benjamin (João Vitor Silva), o único homem a lidar com elas. Ele é tanto uma razão para a fuga, como um motivo para que retornem. É quem as busca, o que terá que pagar o preço pelo sumiço delas e que se sente responsável pelo ocorrido. Ele acaba por representar os pais, os namorados, todos os demais que por elas – as brancas – se importam. Mas onde estão os homens negros? Esses são inexistentes. Por vezes, é quase como se a narrativa proposta se aproximasse da fábula, por evitar debates mais aprofundados e optar por discorrer sobre sonhos pueris e uma necessidade por vezes inadequada de incluir outras pautas, como sincretismos religiosos, relações interraciais e homossexualidade. A preocupação com as temáticas percorridas não poderia ser maior do que o cuidado com o resultado artístico. No entanto, é exatamente o que aqui acontece.

Realizadora estreante, Karen Suzane abraça um discurso que soa bonito enquanto teoria, mas que resulta em um projeto por vezes raso em suas pretensões. Os efeitos imediatos logo esvanecem, como se dessem por satisfeitos com o dito, esquecendo o tanto que poderia ter sido incluído por meio do insinuado ou mesmo apontado, sem tanto didatismo ou exposições. Entre o elenco principal, são poucas as que merecem um maior destaque. Ágatha Marinho, como Tita, é quem apresenta a performance mais sólida, tanto pela maneira como sua personagem se comporta, como também pela força interna que a intérprete somente aos poucos vai revelando, sem ceder às armadilhas propostas pelo texto. Em um conjunto repleto de boas intenções, mas parcas concretudes, Quatro Meninas falha de partida, visto a proposta atabalhoada que leva adiante, como se o ontem não fosse decisivo para a realidade do agora. O filme pode ser de época, e tal contexto merece ser lembrado. Mas o debate se mantém presente, e por isso não pode ser menosprezado, ou mesmo minimizado. Há muito o que pender ao outro lado dessa balança até que um suposto equilíbrio, de fato, se faça real. Até lá, a luta será longa e intensa. Por mais que se almeje um descanso fantasioso, este ainda não tem vez.

Filme visto durante o 58º Festival de Brasília, em setembro de 2025

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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