Crítica

Durante os quase 90 minutos de O Valor de Um Homem a câmera praticamente não desgruda de Thierry (Vincent Lindon), um pai de família na casa nos 50 anos que está desempregado há meses. As demais pessoas em cena são meras figuras que se encaixam em certos papeis, sem muito desenvolvimento próprio, enquanto a esse homem de semblante cansado é dada a missão essencial de espelhar um entorno embrutecido, com esparsos rompantes de bondade. É uma carga pesada conferida a Lindon, algo que o ator tira de letra em virtude da sensibilidade e das nuances com que elabora um personagem recorrentemente achatado pelos ditames do mundo capitalista e, por isso mesmo, fundamentalmente predatório. Pela via da dor, Thierry percebe os atributos vitais a essa sociedade adoentada pela necessidade intermitente de comprar e de vender, e os comportamentos estimados, não em função da moral, da ética ou dos afetos, mas das selvagens leis de mercado.

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A trajetória de Thierry é repleta de contratempos impostos pelo vigente estado das coisas. O fato de não possuir trabalho acarreta uma série de problemas, a começar pelos mais óbvios, ou seja, a falta de dinheiro para garantir coisas elementares, como o pagamento da escola do filho portador de necessidades especiais. Contudo, não é apenas essa privação material que o diretor Stéphane Brizé deflagra por meio da via crucis do protagonista, mas, principalmente, a importância desproporcional dada à posição profissional dos indivíduos – sobremaneira depois da revolução industrial–, às suas colocações como seres sociais. A cada negativa nas entrevistas de emprego, a cada nova tentativa frustrada de reinserção, são postas em xeque as perspectivas de alguém que se vê na iminência de perder tudo o que conquistou. O Valor de Um Homem é um filme seco, às vezes um tanto frio, mas, ainda assim, que transita do macro ao micro, mesmo aparentemente concentrando-se num caso bastante particular.

Há um esquematismo, bem maquiado por Brizé, nas etapas que antecedem a recolocação de Thierry no mercado de trabalho, tais como a emblemática avaliação no que parece ser uma capacitação para lidar com recrutadores. Da postura ao tom de voz, tudo é criticado, dissecado, como se o homem em questão fosse uma máquina que devesse obedecer a programações, sem ater-se aos seus sentimentos ou às frustrações por estar, inclusive, sendo alvo daquela bateria de comentários ferinos. O personagem de Lindon tenta resistir à pasteurização, mas se vê amarrado por regras excludentes. O Valor de Um Homem ganha outras esferas de significância quando ele consegue finalmente um emprego, como segurança de supermercado, ou seja, na condição de leão de chácara do sistema até então denunciado na trama como grande responsável por diminuir o valor do humano.

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O diretor Stéphane Brizé alarga o escopo, embora se mantenha fiel à centralização, quando Thierry recomeça a trabalhar, agora vigiando colegas e confrontando clientes que praticam pequenos furtos. A partir daí, o filme se torna mais incisivo, pois são encarados abertamente os conflitos de quem testemunha os arranjos responsáveis por reafirmar preceitos mercadológicos, colocando-os acima de qualquer outra dimensão mais determinante. Mesmo se ressentindo de uma aridez eventualmente contraproducente, O Valor de Um Homem transpõe suas inconstâncias, vistas especialmente na frágil construção do plano emocional, âmbito nem sempre privilegiado em meio ao desenho da coletividade, para expor um ponto de vista fortemente opositor ao vigente, desiludido pela constatação da realidade, mas crente na representatividade das ações pessoais. A realização de Brizé acaba postulando que as atitudes dignificam o homem, não o trabalho.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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