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Sinopse

Eugenie é uma cozinheira de mão cheia. E está satisfeita em trabalhar para um homem que aprecia a boa cozinha, um verdadeiro gourmet. Após décadas no mesmo serviço, no entanto, a gastronomia e a admiração mútua gerou um relacionamento amoroso. Essa parceria dará origem também a pratos deliciosos, que confundem até os chefs mais renomados do mundo. Ela, porém, valoriza muito sua liberdade e nunca quis se casar. Ele decide, então, fazer algo que nunca fez antes: cozinhar para ela.

Crítica

Em tempos de reality shows que encaram a culinária e a gastronomia por um viés competitivo, em cozinhas caracterizadas pela austeridade de chefs tiranos, O Sabor da Vida vem resgatar os aspectos afetivos dessas artes que combinam ingredientes para aguçar os sentidos. O cineasta vietnamita Tran Anh Hung, o mesmo do elogiadíssimo O Cheiro do Papaia Verde (1993), continua apostando num cinema que ao menos tenta capturar/registrar o intangível, nesse caso o amor que Eugénie (Juliette Binoche) e Dodin (Benoît Magimel) sentem por sua profissão – além do nutrido mutuamente. Ele é um chef respeitadíssimo, sujeito considerado um dos principais nomes da área na França, alguém dado a brindar os amigos próximos com banquetes de extensa duração. Ela é a sua cozinheira principal, o braço direito que permanece nos arredores do fogão para garantir que tudo funcione perfeitamente bem. Os primeiros minutos desse longa-metragem selecionado pela França para representa-la no Oscar 2024 são de puro deleite. Sem pressa, o diretor mostra o processo minucioso de preparar os pratos, vide o cuidado com uma alface levemente aquecida, depois resfriada em água com gelo e mais tarde servida com carne tenra. Esse processo é apresentado com ares de veneração pela paixão investida, típico dos que, segundo Santo Agostinho, atingem a felicidade por continuarem desejando aquilo que possuem.

Ao longo de seus quase 140 minutos, O Sabor da Vida é praticamente desprovido de conflitos. Há as constantes tonturas de Eugénie, que anunciam algo de triste no futuro, e uma situação envolvendo a empáfia do herdeiro do reino da Eurásia tentando subjugar o chef sutilmente. No entanto, nada disso é tão importante para o desenvolvimento da trama. A força do conjunto está nesses instantes em que os personagens não precisam dizer nada para se expressar, até mesmo porque seus gestos eloquentes se encarregam de os revelar. Dodin é um perfeccionista nato, como convém aos profissionais quer atingiram um patamar de excelência difícil de ser alcançado. Mas, também é um homem sensível que demonstra encantamento ao observar Eugénie, seja no exercício de sua atividade profissional ou se banhando no quarto calmamente. É muito bonita a forma como Tran Anh Hung constrói o relacionamento desse casal que compartilha o dia a dia e a vocação. A cumplicidade fundamental para tornar o vínculo ainda mais encantador é possível também por conta do trabalho excepcional de dois atores que enxertam humanidade em seus personagens. Juliette Binoche tem outro desempenho notável, dessa vez como uma mulher apaixonada, mas com certas reticências para aceitar os pedidos de casamento do amado por conta do receio de perder autonomia e ver sua felicidade desmoronar.

“Se nos casarmos, não poderei negar quando você bater em minha porta”, afirma Eugénie determinada, mas com doçura. Já Benoît Magimel também se destaca, mas pela composição de um sujeito que tinha tudo para ser o suprassumo do egocentrismo. Porém, ele é observado em O Sabor da Vida como um especialista meticuloso que não descansa até encontrar os pontos e as texturas corretos, cuja paixão é inspiradora. As longas cenas em que os dois cozinham juntos são carregadas de significados não transmitidos verbalmente. A fotografia assinada por Jonathan Ricquebourg e a direção de arte sob a responsabilidade de Toma Baqueni são essenciais para a elaboração dos banquetes ser extremamente convidativa ao espectador. Como convém ao cozimento de alguns alimentos que precisam apurar por horas, Tran Anh Hung impõe um ritmo lento à cocção desse enredo que não é demarcado por viradas expressivas e/ou mesmo circunstâncias surpreendentes. Tudo o que verdadeiramente importa está nos gestos, no apuro, na exatidão dos movimentos, na reverência à arte gastronômica e na tentativa de criar mais do que pratos a serem degustados, uma vez que a expectativa do casal é promover experiências sensoriais únicas. Trata-se de um longa-metragem daqueles para sair com fome do cinema, sobretudo em virtude das lindas cenas de preparo de iguarias que parecem deliciosas.

O Sabor da Vida não alça voos ainda maiores por conta do preço que Tran Anh Hung paga pela decisão de dar tempo ao tempo e efervescer as relações/ingredientes em fogo baixo. Ainda que os personagens sejam fascinantes, nem sempre o filme consegue dissipar uma leve sensação de estagnação. Ainda nos aspectos frágeis da produção, ela deixa pouco tempo para desenvolver a existência de Dodin pós-fatalidade, passando do luto supostamente pantanoso à excitação em virtude do descobrimento de um novo talento. Porém, nada que comprometa tanto o resultado, essa história bonita de amores cultivados de longa data, distante daquela ideia de paixão que consome até se extinguir. Nesse sentido, o realizador vietnamita conta uma história à moda antiga, enfatizando a beleza dos laços amorosos e das afinidades vocacionais. Além das tão mencionadas passagens em que o casal faz alquimia com verduras, frutas e fontes de proteína, se destacam as ocasiões em que Juliette Binoche e Benoît Magimel travam diálogos indicativos do desejo que seus personagens sentem mutuamente e, ainda, da busca pela perfeição quando trabalham na cozinha por horas a fio. Então, diferentemente da ideia de austeridade agressiva, disseminada pelos reality shows culinários, o que temos aqui é um resgate da dimensão afetiva do preparo à degustação, a comida como arte que comunica intenções, da reverência e carinho.
Filme visto durante a 25º Festival do Rio (2023)

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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