O Rio do Desejo

14 ANOS 107 minutos
Direção:
Título original: O Rio do Desejo
Gênero: Drama, Romance
Ano: 1029
País de origem: Brasil

Crítica

6

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Sinopse

Dalberto é comandante do barco que transporta um passageiro pelas águas agitadas do Rio Negro. Durante a ausência da terra firme, sua esposa acaba se aproximando de seus irmãos, Armando e Dalmo.

Crítica

É curioso como alguns cineastas acabam refazendo sempre os mesmos filmes – obviamente, com as evidentes variações para cada caso. Por mais que Sérgio Machado volta e meia demonstre apreço ao cinema documental – títulos como Onde a Terra Acaba (2001) e A Luta do Século (2016) são destaques em sua filmografia – é fato que sua obra está marcada como antes e depois de Cidade Baixa (2005), longa que foi o grande vencedor do Prêmio Guarani daquele ano (cinco vitórias, inclusive Melhor Filme e Direção) e ainda levantou troféus nos festivais do Rio, SESC, APCA, Miami, Los Angeles, Havana, Huelva, Cannes e no Grande Prêmio do Cinema Brasileiro. Desde então, em maior ou menor grau, quase todos os enredos pelos quais demonstrou apreço mantinham essa figura de uma mulher poderosa capaz de abalar uma paz aparente. Quincas Berro d’Água (2010) só encontra repouso nos braços da prostituta vivida por Marieta Severo, enquanto que a rivalidade presente em Irmãos Freitas (2019) acaba convergindo na presença dominadora da mãe, Zuleica (Edvana Carvalho). Nenhum destes esforços, no entanto, se assemelhou tanto ao exercício original quanto o recente O Rio do Desejo, que também conta com uma jovem em meio a homens em conflito. Se por um lado as boas atuações e o texto delicado de Milton Hatoum faz valer essa revisita, é inegável, também, uma sensação de déjà vu que percorre a trama do início ao fim.

É interessante perceber como Anaíra (Sophie Charlotte) é apresentada ao espectador. Quem surge primeiro é o policial Dalberto (Daniel de Oliveira), chamado para atender a um pedido de socorro. Ao chegar naquele casebre de porta entreaberta, se depara com sangue pelo chão e um homem caído. Aquela que se descobre depois ser a esposa (ou companheira) – papel de Gilda Nomacce, novamente subaproveitada, fazendo milagre com o pouco que lhe é oferecido – surge em prantos, com desculpas incompreensíveis, até que uma voz de razão se faça ouvir: “fui eu”. Quem faz a afirmação é a filha dela, Anaíra. A partir desse instante, nem Dalberto, nem o espectador, conseguirá tirar os olhos dela. Do beijo roubado na despedida ao primeiro encontro oficial, logo estarão sem se desgrudar, fazendo planos que são tanto de uma paixão avassaladora, como de uma vontade incontrolável por mudança. Ela quer sair dali, quer abundância, a cidade grande, conhecer o mundo. Tudo o que ele lhe oferece, no entanto, é um novo endereço. E, por ora, ao menos, parece ser o suficiente para satisfazê-la.

Mas Dalberto também está atrás de uma outra vida. E a dele não se dará em ambientes urbanos e claustrofóbicos, seja encerrado por gente ou por muros. Assim, abandona a farda e compra um navio. Esse é um passo importante para a entrada em cena de um personagem que merecia ser melhor explorado: a floresta Amazônica. Ele quer percorrer o rio, buscar através das águas uma liberdade que nunca experimentou. Mas enquanto se afasta – se vê envolvido, de uma hora para outra, com uma carga bastante especial, que o obriga a ficar meses longe de casa – a mulher que conquistou se vê, ao mesmo tempo, perdida. O pior é a falta de referências. Afinal, não tem mais a mãe por perto – por mais que possa recorrer a ela nos momentos de maior preocupação – e aqueles próximos são tão estranhos quanto familiares. Os irmãos do marido – Dalmo (Rômulo Braga), o mais velho, e Armando (Gabriel Leone), o caçula – estão ali para lhe fazer companhia, mas falta entre eles algo importante: intimidade. E essa pode ser conquistada tanto pela convivência, como pelo desejo.

Assim como em Cidade Baixa a figura de Alice Braga se colocava no meio de dois melhores amigos, vividos por Lázaro Ramos e Wagner Moura, e a relação destes era exibida a partir da chegada dessa terceira, em O Rio do Desejo é Anaíra esse elemento disruptor, com um importante diferencial: se antes tudo se dava às claras, dessa vez é às escondidas, no segredo, infringindo o proibido. Também se faz necessário notar que aqui os laços familiares são concretos: os três são irmãos de fato, e até mais do que isso – órfãos de pai, foram abandonados ainda na infância pela mãe, tendo sido criados, basicamente, uns pelos outros e pela velha senhora que sempre esteve por eles (mesmo que não se sinta confortável para sentar à mesa ao lado deles na hora das refeições). Anaíra, portanto, chega para ocupar vários espaços: a mãe que há muito se foi, a cuidadora que nunca se impôs, o tesão que os três possuem latente, mas se esforçam em disfarçar. Dalberto a assume, e a apresenta como esposa. Dalmo se recolhe, e tenta desaguar suas frustrações em encontros furtivos com prostitutas. A maturidade de ambos falta ao mais jovem. E é por isso que Armando não conseguirá evitar ceder à tentação.

A mistura tem potencial, e a escrita de Milton Hatoum (mesmo autor de Órfãos do Eldorado, 2015, dessa vez, no entanto, se envolvendo também na elaboração do roteiro) é delicada na construção de anseios e decepções de cada um destes protagonistas. Falta, no entanto, um mergulho mais desgarrado, sem medo de provocar ou constranger, que incomode e retire a audiência de sua condição passiva, levando-a a torcer por um ou pelo outro, pela felicidade de um casal em detrimento da decepção dos demais. E por mais que Sophie Charlotte busque se mostrar à altura do desafio, lhe falta essa profundidade que a permita ser vista mais do que apenas alguém a ser conquistado. Por outro lado, está no trio de intérpretes masculinos o diferencial do elenco. Rômulo Braga, até por seu personagem se manter mais distante, ainda que ciente de tudo que se passa ao seu redor, se revela um observador, mesmo que manipule as reações dos irmãos rumo a um desfecho que termina por lhe sair do controle. Já Daniel de Oliveira e Gabriel Leone, ambos com estilos de atuação similares, intempestivos, atentos aos detalhes e donos de uma sexualidade rompante, dominam as atenções. O embate final, que evidentemente acaba por se dar entre eles, aponta para um filme que a todo instante O Rio do Desejo tenta alcançar, e por mais que possua condições para tanto, pouco vai além da promessa.

Robledo Milani

é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.

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