Crítica

Um dos trabalhos de Sophie (Katja Riemann) é ministrar casamentos para apaixonados que não querem celebrar a união sob a égide religiosa. O processo pré-nupcial contempla uma entrevista, estágio constituído de perguntas aparentemente aleatórias e corriqueiras. As reações, porém, dizem muito sobre as complexidades de permanecer a dois. Essa dinâmica incomum abre O Mundo Fora do Lugar. Vemos a protagonista conversando com um casal, cujas respostas inseguras evidenciam a fragilidade do pretensamente óbvio. Os rumos distintos que a trama toma a partir daí parecem empalidecer, ou mesmo colocar em xeque, a relevância dessa cena inicial. Entretanto, ela se torna essencial quando todas as peças se encaixam e percebemos que a cineasta Margarethe von Trotta, também autora do excepcional roteiro deste filme, quer, para além de investigar as particularidades de uma busca, focar-se no que deriva dos laços estabelecidos ao longo da vida, nos deleites e nas dores de conviver.

O pai de Sophie, Paul (Matthias Habich), a quem ela prioritariamente chama pelo nome – o que já deflagra ressalvas, a despeito do carinho demonstrado por ambos –, se depara com a existência de Caterina (a impressionante Barbara Sukowa), cantora lírica nova-iorquina, fisicamente semelhante à sua recentemente falecida esposa que igualmente fazia da música uma parte significativa da vida. Aliás, Sophie também solta belamente sua voz. E como é sintomática desse desacerto ao qual von Trotta tanto se refere nas entrelinhas a cena dela sendo demitida ao cantar as hipocrisias da sociedade num tom melancólico, porém vigoroso. Os clientes não gostam de ouvir verdades no happy hour, portanto Sophie perde espaço. Instigada pela obsessão do pai, parte para os Estados Unidos a fim de conhecer aquela que parece a mãe morta. Encontra uma diva irascível, que trata todos com um distanciamento protetor, abrindo-se plenamente para falar das apresentações, mas blindando a sua intimidade.

Margarethe von Trotta começa, então, a dar subsídios para que permaneçamos intrigados quanto à busca de Sophie. Todavia, não é exatamente o caminho percorrido o que mais nos prende, mas a maneira sensível e inteligente de estofar os passos com o que deriva das relações criadas ao longo do árduo percurso. Muito mais que um exemplar de investigação, de mera curiosidade para desvendar verdades ocultas, O Mundo Fora do Lugar é um pungente inventário emocional. Em determinados momentos, temos a falsa certeza de encontrar uma saída do labirinto, antes mesmo dos personagens, que permanecem às escuras. Faz parte da engenhosidade dessa tessitura narrativa nos entregar o equívoco de estarmos à frente. Um nome pronunciado surpreendentemente, a resistência da famosa, tudo nos direciona a possibilidades parcialmente genuínas, como se de cada suspeita se desprendesse uma peça indispensável ao painel completo, ao remoto que tarda a revelar-se, dada a sua importância.

O Mundo Fora do Lugar ganha ainda mais peso dramático quando desnuda o passado, deixando expostas feridas que provavelmente nunca cicatrização. Essa imersão provoca uma erupção violenta de sentimentos. Os segredos entrelaçam a vida de duas mulheres corajosas que provaram amor incondicional renunciando a algo precioso. Elas, que não podem testemunhar a própria história, por motivos diferentes, são as chaves do outrora para os que vivem o presente entenderem uma nova conjuntura, repleta de oportunidades insuspeitas de edificar o futuro. Margarethe von Trotta faz um filme marcado pela interseção constante entre três tempos do verbo haver, o houve, o há e o haverá, tendo o minucioso cuidado de tornar relevantes as jornadas dos personagens, por menores que sejam as suas participações. Às mulheres, a cineasta se volta com um carinho especial, mostrando-as como proprietárias naturais de uma compreensão mais elevada a respeito do que realmente move o mundo.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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