Crítica

Depois de mais de vinte anos sem qualquer contato, Simão e Sérgio Oksman, respectivamente pai e filho, se reencontram sob o pretexto da Copa do Mundo de 2014. O primeiro é um homem já idoso, que preenche seus dias tocando uma empresa de eletrônicos. O segundo virou diretor de cinema e mora em Madri. O Futebol é o registro dessa reaproximação, um documento bastante pessoal em que o autor é também personagem. Ao esporte bretão é delegada a função de facilitador, uma vez que a representativa temporada de afastamento provoca inevitavelmente um abismo. Os momentos iniciais denunciam a total falta de naturalidade dessa interação que, em tese, deveria ser simples e espontânea. A consanguinidade perde feio quando confrontada pela inequívoca ausência de intimidade. De ambos os lados, as perguntas são tão triviais e burocráticas quanto as respostas. Amenidades são abundantes nos colóquios em meio aos deslocamentos automotivos por São Paulo.

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Dos instantes em que as imagens captadas do banco de trás do carro mostram as tentativas do filho de estabelecer vínculos, em papos sobre as seleções e/ou os times que marcaram época, O Futebol passa a se concentrar, em boa parte de sua duração, na figura paterna, perscrutando-a em busca de compreensão. O diretor Sérgio Oksman sai de cena, valendo-se então do dispositivo cinematográfico para conhecer, ao menos um pouco, aquele cara de raras palavras que não demonstra afeto. Vemos Simão no cotidiano do trabalho, assistindo aos jogos da Copa do Mundo nos botequins, nas garagens e em outros locais a ele corriqueiros. A capacidade de escalar o Palmeiras dos tempos idos ou a lembrança do juiz que apitou a final do campeonato estadual de 1954 - célebre por marcar as comemorações do quarto centenário da capital paulista-, é motivo de orgulho a Simão. Já certos fragmentos do passado, sobretudo no que tange à conturbada vida familiar, foram convenientemente “esquecidos”.

Na medida em que O Futebol avança, ao sabor dessa investigação, se arrefecem as animosidades responsáveis por entravar as conversas. Isso ocorre porque o filho, valendo-se do filme construído, se achega do arredio pai, às vezes até se identificando com seus comportamentos e respostas a determinadas ocasiões. Sem aspirar a um acerto de contas definitivo, a algo que pudesse quebrar totalmente o gelo fomentado pelos muitos anos de ausência, Sérgio se coloca novamente em cena. Ele volta a interagir fisicamente com Simão, apresentando gravações de um tempo remoto, lembrando-lhe, inclusive, da cerimônia do casamento cujo naufrágio foi responsável pela distância. O tempo é pontuado pelos letreiros que, além da data propriamente dita, informam qual jogo estava sendo disputado naquele dia. Especialmente bonita a cena em que eles tentam adivinhar ao longe, apenas por meio dos sons que saem do estádio de Itaquera, o acontecido no campo de jogo.

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O pesar sobrevém à internação hospitalar de Simão, exatamente às vésperas das fases finais da Copa do Mundo. O grande mérito do documentário de Sérgio Oksman é atingir uma pessoalidade genuína. O êxito decorre, principalmente, da maneira sensível e inteligente com a qual diretor decreta uma singular relação de reciprocidade. Enquanto se vale da intermediação da câmera para, paulatinamente, correlacionar anseios e disposições, Sérgio constrói uma narrativa alimentada em muito pelas complexidades que permeiam sua, até certo ponto, traumática dinâmica familiar. Exemplo do substrato íntimo por ele fornecido ao próprio trabalho é a carência essencial percebida no tom das repetidas proposições ao pai. Difícil identificar se O Futebol se beneficia mais da generosidade de Sérgio ou se o filho-realizador é quem, verdadeiramente, deve agradecer aos ganhos que o filme lhe proporcionou, até onde as tensões puderam ser abrandadas. Aqui, arte e vida se nutrem.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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